Palavras do Abismo

Entrei numa casa de banho pública. Tinha um livro azul equilibrado em cima da cabeça. Olhei para o espelho, reparei nele, e pousei-o na bancada. Vi que todas as cabines estavam ocupadas, mas havia uma sanita sem cabine disponível. Estava ali, em espaço aberto, bastante visível, mas não hesitei - puxei as calças para baixo e sentei-me a urinar.

Nisto, um amigo aparece e disponibiliza-se para ficar à minha frente, para tapar possíveis olhares. Mas fica de frente para mim, conversando animadamente. À medida que as pessoas vão saindo das cabines, também se vêm colocar à minha volta para tapar eventuais olhares, sem no entanto evitarem elas próprias olhar. Nada daquilo me incomoda.

Acabo o que estou a fazer, vou de novo para a frente do espelho (entretanto toda a gente desapareceu) e volto a equilibrar o livro em cima da cabeça. Saio, sem lavar as mãos. Um dia normal no mundo dos sonhos.

Contei o sonho ao meu amigo, e ele pediu uma interpretação à AI. Resumidamente, considerou o meu amigo como um porto seguro com quem posso ser vulnerável (e é). A não lavagem das mãos foi interpretado como tendo aceitado a vulnerabilidade e seguido em frente (para mim é só badalhoquice). Quanto ao livro na cabeça, é visto como uma tentativa de manter uma boa postura perante os outros (para mim foi um lembrete que tenho de ir devolver os livros à biblioteca). 

Entretanto, já fui devolver os livros. Ainda não lavei as mãos.


Parca tentativa de recriar o momento com Gemini

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Habitualmente refugio-me na ficção literária para escapar à realidade, que é bem mais dura e inacreditável. Decidi munir-me de um estômago forte e ler este livro. Acreditem, foi necessário.

Pelas coisas que vamos vendo nas notícias, a maioria de nós tem a noção de que Putin é desumano. No entanto, é muito mais do que isso. É todo um nível de genialidade desaproveitada em prol de tudo o que é errado numa sociedade, em nome da sede de poder, controlo e supremacia.

Neste livro, levamos com o murro nos queixos que são as violações como arma de guerra. É difícil de engolir. É nauseante, é insano. Como é que alguém está sentado na sua cadeira almofadada, rodeado de homens de gravata, a decidir estratégias de violação para deitar abaixo o espírito de um povo e impedir que se reproduzam?

A lavagem cerebral do povo russo desde tenra idade, o enxovalhar do Ocidente, a propagação da crença de que os ucranianos são nazis, o feminismo como terrorismo, são outros temas pesados e inacreditáveis do livro.

Outra coisa que me chocou são as fábricas de trolls. Só numa, foram encontrados milhões de cartões SIM, que servem para criar perfis falsos cujo único objetivo é espalhar ódio e desinformação nas redes sociais no mundo inteiro. Quando vemos o destilar de ódio gratuito que circula nas redes sociais, pode ser uma pessoa real, ou não. Pode ser alguém pago para acicatar os ânimos, criar ondas de revolta, fazer circular rumores e fake news. E o povo é apanhado nesta onda avassaladora que leva tudo à frente.

Enfim, vale a pena questionar porque é que as coisas são como são. E aos defensores de Putin que vou vendo aqui e ali, ou vocês estão tapados e não sabem da missa a metade, ou até sabem e são igualmente sanguinários sem empatia e só querem ver tudo a arder, mesmo dentro das vossas casas. Nesse caso, digo-vos o que vocês estão sempre a dizer: se gostam tanto, que vão para lá.

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Nunca o mundo esteve tão polarizado e o ódio nunca esteve tão normalizado. 

Muitos de nós já se confrontaram com o ódio irracional em membros de família ou amigos. Quem nunca aturou um tio racista num almoço de natal ou uma cunhada homofóbica? Respiramos fundo, mantemos a calma, esperamos que o tempo passe e cada um vai para sua casa. Sabemos que só vemos aquela pessoa num outro evento social longínquo e a coisa passa. No entanto, no tempo presente já não é bem assim. Ser mesquinho e odioso parece ser a regra. Existe uma mentalidade de manada desgovernada, não apoiada em factos ou dados sólidos, mas só porque podem. Não percebo o que ganham com isso. Os salários aumentam? Arranjam automaticamente médico de família? A renda fica mais baixa? Qual é o benefício real de se ser odioso, ou qual é o prazer individual que recebem por se ser um filho da mãe? 

O problema cresce quando se trata de pessoas com quem já convivemos há muitos anos, pelas quais temos alguma espécie de carinho. Embaladas por um clima que as favorece e que as protege, soltam a franga e toda a verborreia associada. Vai para a tua terra. És mulher e o almoço não se faz sozinho. Foste violada porque estavas a pedi-las. Foste em missão humanitária, podes ser torturada e morrer que eu fico a rir. Quando uma pessoa que nos é querida sai da caverna emocional onde estava enfiada e começa com este tipo de discurso, o que é correto fazer? Ter paciência, conversar e tentar que entenda factos? Fazê-las ver que estão a ser levadas por fake news? Explicar-lhes que as técnicas que estão a levá-las ao ódio já têm barbas? Provar-lhes que os instigadores de ódio não querem saber deles e das suas necessidades? 

E quando tudo falha? Quando essas pessoas não querem ouvir, não querem debater, só querem atacar, marginalizar, generalizar? Removemo-las das nossas vidas? Passamos uma borracha e apagamos tudo o que foram para nós a um dado momento? Como se pode gostar ou amar quem só odeia? É cansativo e inglório.

Outras questões se levantam. A pessoa sempre foi assim e agora sente-se legitimada? Ou é vulnerável, o público alvo certinho e direitinho, e foi na cantiga? É um novo tipo de problema causado pela atualidade e que gera desconforto entre amigos, famílias, namorados, colegas de trabalho, vizinhos. Não existe um manual de conduta, passos certos a dar, cada caso será um caso. É mais um motivo de ansiedade nas nossas vidas - algo que nos torna incompatíveis em termos morais e éticos com alguém que foi ou é importante. Só posso desejar que se encontrem soluções e pontes comuns e, caso contrário, que possam seguir com a vida em paz.

Ser uma pessoa normal e racional não custa assim tanto. Viver sem desejar o mal a ninguém que não nos fez mal devia ser apenas e só a norma. Para onde é que foi o bom e velho "vive e deixa viver"? Qual é o mal de tentarmos fazer do mundo um lugar harmonioso e agradável para todos?
Tantas perguntas, zero respostas.


Ilustração por Paul Craft/Adobe Stock
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Na minha última ida à biblioteca, a bibliotecária, que já me viu sair e entrar inúmeras vezes com livros debaixo do braço, disse-me: "Creio que temos gostos similares. Penso que gostas de histórias muito humanas com um toque negro." Pois claro, assenti. E recomendou-me Valérie Perrin. Peguei no Três e comecei a ler no próprio dia. 

É tudo o que ela disse, e mais. Daqueles, raros, que nos tiram o ar, e nos fazem pensar nele em momentos random do dia. Daqueles que, quando os terminamos, não terminam, devido à marca deixada, não como uma nódoa negra, que essa acaba por se dissipar, mas como uma tatuagem. Mesmo assim, provocam a dor da despedida. Senti isto numa mão cheia de livros ao longo de toda a vida, e senti-o agora. Não vou dizer sobre o que é, nem tecer comentários, porque foi tão pessoal e especial, que mais do que isto (recomendar) sinto que é estragar a experiência (a minha e a de futuros leitores).

Deixo apenas um trecho, não relacionado com o tema principal, que me fez lembrar o tempo em que saí do Alentejo para ir estudar para a capital:

"Desde que vive em Paris, tem a sensação de já não ver o céu. De comer betão. Antes era o verde, agora é o cinzento aquilo que tem na retina. Nunca ninguém lhe falara daquela violência. Discorre-se sobre conflitos mundiais, prisões, histórias de amor, faits divers, os pasmados, os velhos, prostituição, os desempregados, o fabrico de automóveis, mas nunca ele ouvira testemunhos sobre o que sente um provinciano quando desagua em Paris. Tudo parece imenso, perdemo-nos, sentimo-nos perdidos mesmo que não o estejamos, ninguém se fala, ninguém se vê, ninguém se cumprimenta. Os olhares voltados para um interior imenso, um labirinto de solidões. Como se uma tristeza comum estivesse colada às solas dos utentes do metro.
Paradoxalmente, apesar da opressão, da multidão, Adrien sente-se mais livre. Afogado nas massas. Ser anónimo tranquiliza-o. Aqui, não há mexericos, maledicências nem juízos de valor. Aqui, estão-se todos nas tintas para os outros. Quando se morre em Paris, ninguém sabe. Quando se morre em La Comelle, sai um artigo no jornal. 

in Três, de Valérie Perrin



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Estava a chegar ao escritório (no sonho não estava em teletrabalho), e disseram-me que hoje se ia trabalhar a partir da cave. Eu e outra colega que estava a chegar ao mesmo tempo nem pusemos questões e dirigimo-nos para lá.

A cave estava escura, apenas com uma luz amarelada vinda de uma lâmpada pendurada no tecto, e bafienta. Já lá estavam alguns colegas a tentar, sem sucesso, apanhar o wi-fi. Nisto começámos a ouvir sons estranhos e começámos a procurar a sua origem. Era um gatinho, mas não verdadeiro, parecia um peluche que tinha ganho vida. E nós ficámos deslumbrados, dissemos como era bonito e parecia magia. E o gato fala: "Não é magia! Sou um espírito maligno enfiado neste objeto de pano e pelúcia! Temam-me! Vou-vos matar!". E nós, "ooooohh que fofo, o gato fala", e cagámos completamente nas ameaças, continuando a tentar trabalhar. 

O espírito foi procurar outro objeto para possuir, e voltou no corpo de "Dora, a Exploradora". Mais "ooohh" e "aaahh" surgiram, uma das colegas disse: "Aiii a Dora, a minha filha ama, se estivesse aqui ia encher-te de abraços". E o espírito maligno sentiu vontade de chorar. Depois acordei. Não sei que forma terá tomado a seguir, mas imagino que tenha sido um Nenuco ou uma goma de ursinho.



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Agora que o verão está quase a terminar, termina também um problema que nos aflige a todos, pelo menos uma vez na vida. As putas das melgas. 

No entanto, o meu problema em si não são os insectos - eles estão apenas a fazer o seu trabalho, que é ser chato e chupar-nos sangue. O que me faz sentir estúpida é que estou naquele estado de pré-sono, ouço o zzzzzzz típico da bicha perto do ouvido, e a minha reação é esbofetear a minha própria cara. SEMPRE. SEMPRE. Acabo por acordar estremunhada com a violência e perder o sono. 

E porque sou o epítome da benevolência, ainda me levanto para tentar colocar a culpada dentro dum tupperware e soltá-la lá fora, porque me custa matar um bom trabalhador que faz turnos da noite.




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Será que a ausência de som absoluta existe? Ontem à noite, no silêncio sepulcral do meu leito, reparei com deleite na total ausência de sons - nem pessoas, nem animais, nem vento, nem carros, absolutamente nada. Enquanto apreciava a calmaria, reparei também que existia, sim, um som. Vindo da minha própria cabeça, dos meus ouvidos. Como se o meu corpo combatesse o silêncio produzindo ou inventando sons para meu desprazer.

É raro lembrar-me do que estou a pensar antes de dormir, mas hoje lembrei-me e fui pesquisar sobre isso. Parece que é uma cena. O fluxo sanguíneo pode fazer-se ouvir, aliado à atividade neurológica, blá blá blá, e forma uma espécie de zumbido interior. O que importa é que, foda-se, não dá para estar em completo silêncio, pois não? Deve ser isto que querem dizer no The Sound of Silence, toda uma canção dedicada ao zumbido que fica quando tudo se cala. De qualquer forma, feliz é quem chega a esse ponto de estar tanto silêncio que dá para ouvir os seus sons internos.


Imagem gerada por AI com o pedido "Sound of Silence". Apeteceu.


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Conforme os anos vão passando e nos vamos distanciando do 25 de abril de 1974, mais se observa o levantar de vozes dignificando Salazar, que "nesse tempo é que era". Não é de estranhar que a maior parte destas vozes não fosse viva nessa altura. E também é notório que devem falar pouco com os pais, ou com os avós. Nunca devem ter ouvido a realidade de uma boca próxima, de uma pessoa real que viveu a vida tal como ela era. Ou então, são de famílias privilegiadas. Para eles, relatos de pessoas presas, espancadas ou mortas por serem contra o regime, por opinarem, por terem voz na praça pública, são como ficção. Sem se darem conta do facto de que elas próprias terem abertura e liberdade para dizer as baboseiras que querem, é produto do fim da ditadura.

O que agora é feito com normalidade - dizer mal do governo, comentar a vida política nos cafés, VOTAR livremente! - não era possível. Os comentadores de Facebook que passam a vida a denegrir os líderes políticos atuais (sejam eles quais forem), já teriam recebido uma visita de uns certos senhores e nunca mais seriam vistos. A imprensa, que hoje consideram parcial, um "jornalixo", era altamente controlada pelo Estado e só eram publicadas notícias que lambessem as botas ao governo ou que fossem tão inócuas e dóceis que não fizessem mossa a ninguém.

Esses saudosistas da tanga, que decerto batem punhetas a ver gajas nuas entre posts a destilar veneno, nem se devem lembrar que as mulheres tinham de andar tapadinhas, em nome da decência e do decoro, tendo os biquinis sido proibidos e os tamanhos dos decotes eram determinados na lei.

Esses punheteiros que, muitos deles, gostam de ver o seu filme de super-heróis, não devem saber que as bandas desenhadas vindas do estrangeiro eram proibidas. Esses punheteiros, que dão uma golada na Coca-cola entre punhetas, não se devem lembrar que a bebida era proibida em Portugal, por medo da modernidade!

Decerto contribui para esta tesão pelo Estado Novo o controlo que era feito às mulheres. As enfermeiras, telefonistas e hospedeiras não se podiam casar. Se quisessem viajar, as mulheres tinham de ter autorização do marido, assim como para assinar documentos e tomar decisões sobre bens que lhes pertencessem. A sua correspondência também era controlada pelo marido. O acesso a um sem número de profissões era negada. As professoras tinham de ter, obrigatoriamente, um salário inferior ao marido, e precisavam de autorização para casar. E se levassem nos cornos, ou fossem traídas, era deixá-las andar, que o divórcio era proibido. Nas escolas, nada de misturas - meninas para um lado e meninos para o outro. Saias, só se não mostrassem joelhos. Que tesão, hein, machistas?

Hoje, inflamados por discursos populistas, enchem a boca com expressões como "os estrangeiros que nos invadem têm tudo, e os nossos sem-abrigo?" Pois, na altura, era proibido ser-se sem-abrigo. Se não houvesse um documento que comprovasse incapacidade para trabalhar, iam para a prisão. Percebem a contradição?

Coisas simples como acender um cigarro ou andar de bicicleta (para ter isqueiro e bicicleta era preciso licença), jogar às cartas no comboio, ouvir a música que querem, os filmes que querem, ver os programas que querem, ler os livros que querem, andarem de mãos dadas na rua, ou dar um beijinho, fazerem reuniões ou ajuntamentos de pessoas, sacudir o pó, dariam, na altura, com sorte, uma multa, ou com a falta dela, prisão ou mesmo a morte.

Não consigo mesmo entender os lunáticos que olham para as características da ditadura e dizem, sim senhor, é isto mesmo que eu queria. É que só podem ter um distúrbio. Não há um argumento que considere válido na defesa da ditadura. Venham os punheteiros dizer, ah mas as contas estavam equilibradas, tínhamos dinheiro! Pois, havia quem tivesse dinheiro, principalmente os amigos do regime, e havia quem fosse pobre. Se tivemos um crescimento substancial foi devido às exportações durante a guerra e à exploração das colónias. De resto, o medo da modernidade travou a industrialização e Portugal era um país bastante atrasado, preso à sua ruralidade. Ah, e construiu uma ponte. Pronto, então tudo bem, aceito levar pontapés no lombo por ler um livro proibido em troca de uma ponte. Não há mais ninguém no mundo que nos faça uma ponte. Nem havia o raio dum salário mínimo, nem sequer direito a férias! Não havia saúde pública, ensino público, sindicatos, direito à greve... Porreiro, pá!

Este ano assinalam-se 50 anos do fim da ditatura e é chocante existirem pessoas que a ela querem voltar. Quero acreditar que não sabem o que dizem. Quero acreditar que não encontram prazer na repressão e na tortura. Quem nos tirar a liberdade, tira-nos tudo. Pesquisem entrevistas de quem passou mal, falem com gerações mais velhas, estudem as atuais ditaduras. E se mesmo assim acharem que "nesse tempo é que era", e como "quem está mal muda-se", força, emigrem para um país com um regime ditatorial e divirtam-se. Sugiro a Coreia do Norte, vão adorar.

As eleições estão à porta. Não fiquem em casa. Façam uso do direito que foi conquistado a pulso. Não tomem nada por garantido. Olhem para o que está a acontecer no mundo. Não sucumbam a discursos populistas inflamados. Não fechem as portas que Abril abriu. Precisamos de responsabilidade, comprometimento e honestidade, sim, mas nunca, NUNCA, à custa de ódio e medo.

Fascismo nunca mais, 25 de abril sempre!



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 "Dorah estava bem melhor, embora continuasse a pedir-me que lhe comprasse xarope para a tosse na farmácia da 107 - segundo ela, o farmacêutico da nossa rua era um filibusteiro, que desconfiava dela e se recusava a aviar-lhe as receitas"

in "O nome que a cidade esqueceu", de João Tordo (2023)


filibusteiro
O mesmo que flibusteiro.

nome masculino
1. Pirata dos mares americanos, nos séculos XVII e XVIII.

adjectivo e nome masculino
2. Que ou quem é aventureiro ou temerário.
3. Que ou quem é ladrão ou trapaceiro.

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024


Filibusteiro, portanto, está associado a piratas. Logo, não é de estranhar que tenha duas conotações, que até estão ligadas. Os piratas roubavam e pilhavam, sim, mas é (ou era) preciso uma grande dose de coragem para passar anos, ou mesmo a vida, no mar, enfrentando tanto as agruras dos oceanos, as tempestades e tudo o mais; como para enfrentar inimigos, doenças e maleitas, arriscando a vida.

Pode ser tentador adjetivar alguém de filibusteiro, hoje em dia, mas, salvo exceções, considero que estamos a passar por uma escassez de filibusteiros. Quem mais nos rouba, fá-lo a partir de um certo conforto, de uma certa posição na sociedade, protegido por uma certa rede de segurança. As armas mais usadas são as falinhas mansas, informações falsas, falsas promessas, dizer o que o outro quer ouvir. Passámos das espadas e dos canhões, das lutas corpo a corpo, da coragem de morrer por um modo de vida, para a falsa sensação de segurança provocada por fato e gravata, promessas de enriquecimento rápido ou fontes de juventude eterna. Já não se fazem filibusteiros como antigamente, isso é certo.



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Sou uma morning person. Todos os dias me levanto às 06h15 para treinar ou correr antes de começar o dia de trabalho. Às vezes custa, mas na maior parte dos dias faço-o com prazer e energia. Já o faço há tantos anos, que aos fins de semana acontece o mesmo involuntariamente: acordo muito cedo e acabo por despachar as tarefas domésticas cedíssimo, que realizo a ouvir música e a dançar como se ninguém estivesse a ver. Ora, isto significa que às 22h30 estou deitada com uma moca de sono descomunal. Ok, posso dizer que quanto mais velha pior, mas o facto é que eu sempre fui assim - durante a manhã sinto-me a Supermulher, ao fim do dia tenho 90 anos e uma mantinha nos joelhos.

Há uns tempos a Jamie Lee Curtis disse que recusava convites de tudo o que achasse tarde. Até recusou ir ao jantar dos últimos Óscares porque já apanhava a sua hora de deitar. E também disse que devia haver matinés para tudo, especialmente concertos. Achei completamente relatable.

A não ser que vamos a um festival, onde há concertos que começam durante a tarde (aqueles que quase ninguém paga para ir ver), não existem praticamente espetáculos durante o dia. Não estou a falar de eventos locais esporádicos que possam existir, e existem, e eu vou aqui aos da minha zona. Estou a falar, por exemplo, de ver Metallica na Altice Arena às 15h00. Ou às 17h. Ou mesmo às 19h. Impossível, não é? Mas porquê? A essa hora há transportes à farta, a energia está em altas, e é um espaço fechado, que interessa se é dia ou noite lá fora?

"Ah, mas a essa hora, mesmo ao fim de semana, há pessoas a trabalhar". Pois, também há pessoas que trabalham à noite. E mais, se eu quiser ir a um festival em Portugal, tenho de meter férias porque são tipicamente à quinta, sexta e sábado. Portanto, o que é mais conveniente para uns não o é para outros, o que invalida esse argumento. Quantos a outros argumentos, não os encontro e não consigo vislumbram quais poderiam ser.

É também uma questão cultural. Já fui a um concerto em Paris onde a banda principal atuou às 18h30 no Moulin Rouge. Já estive num festival em Inglaterra em que Metallica fechou o dia às 20h30 e às 22h30 estavam a expulsar as pessoas do recinto. No mesmo festival, às 11h00 da manhã seguinte estava a ver Volbeat. Por cá, parece-me que é tudo tardíssimo, e ainda por cima muitos começam com atraso. Até a Lorde, no último Paredes de Coura, perguntou em palco como é que os portugueses se aguentavam com estes horários de concertos.

Enfim, tudo isto para dizer que deviam haver mais eventos para morning people. Tenho a certeza que eu e a Jamie Lee Curtis não estamos sozinhas. Quero curtir as cenas com energia, com transportes disponíveis, com tempo à farta para chegar a casa. Quero sair de um concerto e ter restaurantes abertos, luz do sol, ou um pôr-do-sol, em vez de bocejos, olhos semicerrados da miopia exacerbada pelo período noturno e um desejo tremendo de estar debaixo dos lençóis. E sair de casa já de noite? Depois de estarmos no sofá? Com mantas? Como é que se faz isso de ânimo leve?

Everything is New, Prime Artists, Música no Coração, afins, ponham os olhos neste post. Está aqui o embrião duma ideia milionária.




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