Palavras do Abismo

Na minha última ida à biblioteca, a bibliotecária, que já me viu sair e entrar inúmeras vezes com livros debaixo do braço, disse-me: "Creio que temos gostos similares. Penso que gostas de histórias muito humanas com um toque negro." Pois claro, assenti. E recomendou-me Valérie Perrin. Peguei no Três e comecei a ler no próprio dia. 

É tudo o que ela disse, e mais. Daqueles, raros, que nos tiram o ar, e nos fazem pensar nele em momentos random do dia. Daqueles que, quando os terminamos, não terminam, devido à marca deixada, não como uma nódoa negra, que essa acaba por se dissipar, mas como uma tatuagem. Mesmo assim, provocam a dor da despedida. Senti isto numa mão cheia de livros ao longo de toda a vida, e senti-o agora. Não vou dizer sobre o que é, nem tecer comentários, porque foi tão pessoal e especial, que mais do que isto (recomendar) sinto que é estragar a experiência (a minha e a de futuros leitores).

Deixo apenas um trecho, não relacionado com o tema principal, que me fez lembrar o tempo em que saí do Alentejo para ir estudar para a capital:

"Desde que vive em Paris, tem a sensação de já não ver o céu. De comer betão. Antes era o verde, agora é o cinzento aquilo que tem na retina. Nunca ninguém lhe falara daquela violência. Discorre-se sobre conflitos mundiais, prisões, histórias de amor, faits divers, os pasmados, os velhos, prostituição, os desempregados, o fabrico de automóveis, mas nunca ele ouvira testemunhos sobre o que sente um provinciano quando desagua em Paris. Tudo parece imenso, perdemo-nos, sentimo-nos perdidos mesmo que não o estejamos, ninguém se fala, ninguém se vê, ninguém se cumprimenta. Os olhares voltados para um interior imenso, um labirinto de solidões. Como se uma tristeza comum estivesse colada às solas dos utentes do metro.
Paradoxalmente, apesar da opressão, da multidão, Adrien sente-se mais livre. Afogado nas massas. Ser anónimo tranquiliza-o. Aqui, não há mexericos, maledicências nem juízos de valor. Aqui, estão-se todos nas tintas para os outros. Quando se morre em Paris, ninguém sabe. Quando se morre em La Comelle, sai um artigo no jornal. 

in Três, de Valérie Perrin



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"Felicidade", o mais recente romance de João Tordo, é um poço de tragicidade. É ao mesmo tempo uma leitura leve (no sentido em que é bastante fluída e não queremos largar o exemplar), mas também carrega um peso emocional elevado, uma carga que se nos alapa aos ombros e que jamais sacudiremos.

É difícil falar deste livro sem revelar detalhes. É um acumular deles, pequenos alfinetes que se vão acumulando numa almofadinha formando florestas de picos. Mas vou tentar.

Felicidade é uma trigémea. Juntamente com as outras irmãs, Esperança e Angélica, formam um trio de raparigas invejável. Confiantes, determinadas, bonitas, são quase como um mito passeando-se pela escola, vítimas dos olhares e desejos dos rapazes e da inveja das raparigas. O narrador, um rapaz de 17 anos, apaixona-se por Felicidade, aquela que parece ser a cola que gruda as irmãs, a força motriz, o motor. Depois de uma aproximação tímida, os dois têm um encontro. Pela primeira vez, o rapaz tem à disposição o carro do pai, que o emprestou para a feliz ocasião. Sucede uma ida ao cinema, e depois seguem para Monsanto, onde acabam os dois, no carro, sozinhos, na mata, no silêncio da noite, embora gritassem por dentro. O que acontece depois, é impronunciável.

Aquele rapaz, que ainda nem tinha atingido a idade adulta, vê a sua vida destruída em segundos. O que aconteceu naquela noite irá atormentá-lo para sempre. Algo que reviverá todos os dias da sua vida e que o impedirá de atingir até a mais ténue das normalidades. Assistimos à espiral de destruição, lenta mas determinada, que o vai consumir ao longo dos anos e mergulhá-lo numa melancolia profunda.

Ambientada nos anos 70, num ambiente político transitório que antevê tempos de mudança e de liberdade, esta história drástica entranha-se cá dentro, permanece no âmago, porque neste mundo de "ses", de vários caminhos e possibilidades, é mero acaso estarmos onde estamos agora e não noutro sítio qualquer, quiçá um sítio negro, um buraco sem fundo impossível de trepar.



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"_ Quando somos novos temos imensas esperanças, mas depois acomodamo-nos. Percebemos que mais dia menos dia vamos todos morrer, sem termos descoberto as respostas às grandes perguntas. Desenvolvemos uma série de teorias chatas que só servem para interpretar a realidade das nossas vidas de diferentes maneiras, mas que não ampliam o nosso corpo de conhecimentos válidos sobre as coisas importantes, as coisas reais. Basicamente, vivemos vidas curtas e decepcionantes, e depois morremos. Preenchemos as nossas vidas com as mais variadas merdas, coisas como a carreira profissional e as relações amorosas, só para nos convencermos que não foi tudo em vão. O cavalo é uma droga honesta, porque destrói estas ilusões. Com o cavalo é assim: quando te sentes bem, sentes-te imortal; quando te sentes mal, intensifica a merda que já estava dentro de ti. É a única droga verdadeiramente honesta. Não altera o estado de consciência dum gajo. Primeiro dá-te um flash e uma sensação de bem-estar. Depois disso, começas a ver as desgraças do mundo tal como elas são, e não há modo de te anestesiares contra elas."

in Trainspotting, de Irvine Welsh (1993)



Toda a gente conhece o título Trainspotting, talvez mais por causa do filme realizado por Danny Boyle em 1996, do que propriamente pelo livro. O filme já tinha visto há muitos anos. O livro, li-o agora. Se acharam o filme cru, o livro ainda o é mais, como é habitual nestas adaptações.
De uma realidade fria e sem filtros, não é para todos os estômagos. A linguagem é violenta, as acções são violentas, o desenrolar dos acontecimentos é violento. Para mim, estupendo, que lambo os beiços por estas coisas. 
Tecnicamente pode não ser fácil de ler, porque não tem propriamente uma linha narrativa linear. O texto conta-nos o dia-a-dia de um grupo de amigos de Edimburgo que são basicamente uns parasitas sociais, drogados, bêbados e desempregados que vivem à custa de subsídios e esquemas e fazem questão de, orgulhosamente, o continuar a fazer. A narrativa dá imensos saltos e tem diferentes narradores que podem não ser imediatamente identificáveis. Foi-me natural entrar neste modo de diferentes vozes e momentos - o leitor dá por si a reconhecer, pelo estilo da linguagem e pela cadência das palavras quem está a falar-nos naquele momento. Este registo de não nos dar tudo de bandeja é para mim um plus.
Outro ponto que nos mostra a beleza deste livro é que, apesar de estarmos a falar de viciados em heroína que só pensam em droga, sexo e arranjar dinheiro para droga e sexo através de meios duvidosos, passamos a gostar imenso destes personagens. Nem percebemos porquê. São uns mal-educados, muitos são violentos, tratam mal as mulheres, os pais, desprezam os outros por razões mesquinhas, e aqui estamos nós, leitores, sensibilizados, a desejar-lhes tudo de bom. 
Irvine Welsh não tem papas na língua (ou na caneta) e este livro representa tudo o que ele é, não só no estilo como nas experiências vividas. Tornou-se um objecto de culto e veio definir a linha literária do autor.


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