Ode de ódio à vida adulta
Ter um emprego. Mal pago para a pressão e as horas que trabalhas. Com colegas de merda que, se escolhesses, nunca os terias na tua vida. Conversas de merda, bocas de merda, horário de merda. Andaste a estudar para isto? Parece que sim. Sairás alguma vez deste ciclo? Pode ser que sim, mas muito provavelmente, não. Tal como os teus pais ainda têm um emprego de merda, tu também continuarás nessa sopa.
Porque tens contas para pagar, animais ou filhos à tua responsabilidade, uma hipoteca de uma casa mal situada difícil de vender. Não podes simplesmente deixar tudo para trás e percorrer o mundo como vês de vez em quando nas notícias que alguém faz. Invejas secretamente o filho da puta e acedes ao site do teu banco para ver se alguém se enganou e transferiu alguns milhares para a tua conta. Mas não. Continuas com o saldo para pagar as contas assim rés-vés-campo-de-ourique. Vá lá, este mês não está a negativo. Nem tudo é mau.
Queres ocupar o pouco tempo livre com algo importante. Mas os teus amigos têm a vida deles e deixaste de estar incluído. Já não aguentas o ginásio e as corridas como antigamente - aquela dor no joelho que não passa e a coluna deformada das horas que passas sentado ao computador. Ler é cada vez mais difícil com a miopia a aumentar. Ir para a praia implica dinheiro, e este mês já está tudo contado. Nem podes dar uma bufa fora do sítio. E o dentista vai ter de ficar para o mês que vem. Ou para o outro. Resta-te o sofá, a televisão, e a tua própria desanimada companhia.
Olhas-te ao espelho. Já não és o mesmo. A pele manchada, os cabelos brancos que teimam em espreitar, as rugas inevitáveis. Lembras-te como as ganhaste? Valeu a pena? Contam histórias bonitas, como dizem nos anúncios? Não. Cambada de tretas. Nem deste pelo tempo passar. Os cabelos brancos foram todos ganhos a aturar as merdas do teu chefe e os gritos da tua ex-mulher. As rugas, a franzir os olhos para olhar para o computador, tentando compensar a crescente falta de vista.
Queres agarrar-te às coisas boas, mas agora tudo é responsabilidade e maturidade. A melhor coisa que tens ainda é a merda da rotina que, pelo menos, te faz levantar o cu da cama todas as manhãs. E quando isso é a melhor coisa que tens, bem podes ver a vida de merda que é a tua.
De vez em quando sentes o sol na pele, ouves os pássaros e sentes a brisa na fronha. Mergulhas na música, e na pintura, e num texto que te atingiu como um tiro bom. Vês um filme que te toca, lês um livro que mexe contigo. Mas são apenas momentos. Fazes por esticá-los e prolongar essa sensação, mas é rapidamente esmagada sob o peso da vida adulta. Tentas partilhar o que sentes com alguém, mas espetam-te com uma frase feita cheia de moralismo que não te diz um cu.
Ainda por cima, não és suficiente bom para nada. Não correspondes às expectativas de ninguém. Estás sempre a fazer tudo errado. Para o teu chefe, para a tua ex-mulher, para os teus pais, para os teus filhos, para a sociedade. Fazes tudo mal. Todas as tuas escolhas estão todas erradas. Deves ter defeito. Todos te saltam em cima. Se calhar és apenas um erro de cálculo. Um espermatozóide que só deve ter chegado à meta porque os outros desistiram.
Merda para a vida adulta. O nosso tempo por cá é tão curto e não passa de uma prisão, de um presente envenenado. Onde preencho os papéis para voltar atrás? Ou então para o "que se foda". Também pode ser.
2 comentários
Hoje em dia lamento as vezes que dizia que as férias nunca mais acabavam, ou que eu nunca mais crescia! A sensação de tempo desperdiçado não tenho, porque li tantos e tão bons livros nesses tempos!
ResponderEliminarForça, que esta vida adulta também tem que se lhe diga de interessante. E mesmo que se seja diferente da grande maioria, a vida tem tanto de interessante (e "eles" não sabem o que perdem, problema "deles")
Bom dia ;-)
É verdade que tem muito de interessante, mas parece que tudo é abafado pela responsabilidade que nos chama constantemente e nos impede de viver em pleno. Enfim, um dia adulto de cada vez. Obrigada :)
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