Pessoas estranhas #139 - a Sandra do Expresso
Ontem foi dia de ir ao escritório a Lisboa, e no autocarro de regresso uma mulher aproxima-se e pergunta: "posso sentar-me ao teu lado? O meu bilhete é lá prá frente, mas odeio ir à frente". Eu acedi. Ela senta-se, e inicia uma chamada em alta voz:
"- Estou? É da Wecare?
- Sim, boa tarde, é da Wecare Parque das Nações.
- O doutor X ainda está aí?
- Não, de momento já não se encontra.
- Ele foi mêmo fixe pra mim. É só pra dizer que já tou no autocarro.
- Desculpe?
- É pra avisar o doutor que cheguei a tempo de apanhar o autocarro das 5. [silêncio] É que o doutor despachou-me rápido pra eu vir a correr, e queria dizer-lhe que apanhei o autocarro.
- Ah, ok... Esteja descansada. Com licença...
- SOU A SANDRA! SANDRA!*
- pi pi pi [som de telefone desligado]"
*Nome fictício
Tenho quase a certeza que o doutor não foi avisado que a Sandra apanhou o autocarro...
Ouvi esta conversa e pensei, "que personagem". Momentos depois, perguntou-me se aquele autocarro costumava estar sempre tão cheio. "É que eu não sou daqui", disse. "E raramente cá venho". Pronto, vi logo que não ia ter uma viagem silenciosa e que se calhar teria de educadamente dar a entender que ia ler o meu livro e encerrar para conversas. Lá respondi, sim, tem ido sempre cheio, e eu também não sou daqui. "Ai não, és de onde?" Respondi e, pasme-se, somos da mesma terra. No entanto, nunca nos tínhamos visto. Talvez ela seja uns aninhos mais velha, ou então está apenas maltratada da vida. Olhando-a, com o seu ar cansado, muito magra, as roupas coçadas, e pelos modos e maneira de falar, percebi que não tinha tido uma vida fácil.
Resumindo e concluindo, acabámos por falar a viagem inteira. Palavra puxa palavra, ela fazia-me perguntas, genuinamente interessada na minha vida, e eu retribuía também com vivo interesse. Por questão de organização, vou listar as coisas que quis partilhar comigo:
- Foi mãe aos 21 anos, de um homem que não quis saber dela, e desde então tem sido mãe solteira
- Esse homem, pai do filho, morreu o ano passado de cancro de pele
- O pai morreu de cancro na garganta quando ela era mais nova, e guarda uma grande mágoa por não a terem deixado vê-lo nos últimos momentos
- Orgulha-se de ter conseguido tirar o 12º ano há pouco tempo. Disse que alguns professores foram arrogantes e tentaram dificultar-lhe a vida, mas encontrou outros que realmente se interessaram em ajudá-la a ultrapassar as dificuldades de aprendizagem
- Um dos seus grandes sonhos é tirar a carta de condução. Um membro qualquer da família fez-lhe a cabeça em como não ia conseguir tirar e não era para ela, então nunca tentou
- É cuidadora informal da mãe a tempo inteiro, que está acamada com uma doença grave
- Conseguiu deixar de fumar
- Tem um cão e alguns gatos. Odeia touradas, maus tratos a animais e até já quase não come carne
Foi sem pingo de auto-comiseração que falou de si. E devido ao seu interesse e perguntas, também falámos de mim. Perguntou-me se tinha licenciatura, em que trabalhava. É um bocado difícil explicar o que é um gestor de conteúdos web e developer a quem essas coisas não dizem nada, mas tentei e disse-lhe o nome conhecido da empresa onde trabalho. "Ah, és uma espécie de técnica". Não era, mas assenti, claro. "Tens um curso e um bom trabalho, mas sei lá, a olhar para ti, pensei que eras uma pessoa simples!" Ri-me, pela perceção eterna de que o nosso aspeto é um cartão de visita, e que gosto dele: uma pessoa simples. E sou mesmo. Ela diz: "fogo, tens cá uma cabeça, imagino o stress que passas e a pressão que tens em cima. E depois de estudar fora longe dos amigos e família, de quarto alugado em quarto alugado. Não é fácil mesmo. Tu és forte". Eu fiquei estarrecida e senti-me como se tivesse levado com um balde de humildade na fronha. Não, Sandra. Marrar e tirar um curso com o apoio dos pais, aturar chefes maus e enfrentar a pressão duma grande empresa não é nada difícil, em comparação. Difícil é a tua vida e cuidar dos outros como cuidas, a suportar três pessoas e animais com um apoio monetário da treta, a limpar feridas e o rabo da tua mãe, e carregá-la com esses teus 40 quilos até à cadeira para ela poder ver o mundo lá fora à janela. Sabes o que são dificuldades a sério, sabes o que é a morte, sabes o que são sonhos a ficar para trás. Sandra, eu não era capaz de fazer o que fazes, tu é que conheces a pressão e tens a força. Ficou com os olhos humedecidos. Provavelmente, raramente lhe reconhecem o mérito.
Houve alguns momentos em que a "personagem" renasceu. Durante o seu discurso, disse várias vezes: "o meu maior atributo é o auto-domínio!" Isto do nada, mesmo quando o assunto não tinha nada que ver. Outra coisa que ia repetindo: "o problema lá da terra são as invejosas! Eu já não falo com quase ninguém lá!". A dado momento, disse que tinha de ouvir uma música, e abriu o Youtube alto e bom som, com uma música de Post Malone. "Raramente tenho tempo para ouvir música". E até cantou. Dei-lhe a dica: se quiseres, empresto-te uns phones. Recusou, e não pôs mais nenhuma.
Disse que tinha de arranjar maneiras de espairecer, nem que fosse um bocadinho. Disse-lhe que correr e fazer ioga resultava comigo, e ela respondeu que correr não, que lhe doíam os joelhos, que gostava de se iniciar no ioga mas não sabia como. Dei-lhe umas dicas, pareceu satisfeita e com vontade de começar. Relativamente às invejosas que ia mencionando com frequência, tentei fazê-la ver que ela já tem muita sarna para se coçar e não precisa de se preocupar com o que os outros pensam, dizem e fazem. Que sei que é difícil fugir a esse tipo de falatório numa terra pequena, mas que ia sentir libertação no cagar e andar. Fiquei com a sensação de que a conversa das invejosas estaria relacionada com ela não colocar a mãe num asilo para esta continuar a receber a reforma (que deve ser enorme...). Disse-me que meter a mãe num asilo significaria morrer numa cama sozinha sem amor, e ela não ia deixar isso acontecer, principalmente depois de não a deixarem despedir do pai moribundo.
Já quase no fim da viagem, o filho ligou-lhe, e mais uma vez em alta voz, ouvi:
Disse que tinha de arranjar maneiras de espairecer, nem que fosse um bocadinho. Disse-lhe que correr e fazer ioga resultava comigo, e ela respondeu que correr não, que lhe doíam os joelhos, que gostava de se iniciar no ioga mas não sabia como. Dei-lhe umas dicas, pareceu satisfeita e com vontade de começar. Relativamente às invejosas que ia mencionando com frequência, tentei fazê-la ver que ela já tem muita sarna para se coçar e não precisa de se preocupar com o que os outros pensam, dizem e fazem. Que sei que é difícil fugir a esse tipo de falatório numa terra pequena, mas que ia sentir libertação no cagar e andar. Fiquei com a sensação de que a conversa das invejosas estaria relacionada com ela não colocar a mãe num asilo para esta continuar a receber a reforma (que deve ser enorme...). Disse-me que meter a mãe num asilo significaria morrer numa cama sozinha sem amor, e ela não ia deixar isso acontecer, principalmente depois de não a deixarem despedir do pai moribundo.
Já quase no fim da viagem, o filho ligou-lhe, e mais uma vez em alta voz, ouvi:
"- Onde é que tás?
- Não estou por perto.
- Não há mortalhas.
- Filho, não estou por perto.
- Epá, demoras muito?
- Não sei bem...
- DESPACHA-TE E TRAZ-ME MORTALHAS CARALHO!"
Não admira que esteja sempre a repetir que tem muito auto-domínio. Tem mesmo. Se alguém me falasse assim já lhe tinha partido uma cadeira na boca. Disse-me que não tinha dito a ninguém que tinha ido a uma consulta a Lisboa, porque sempre que faz alguma coisa por ela própria, todos levantam problemas. Vida do cacete.
Saí uma paragem antes dela. Antes de sair, ela disse-me: "Obrigada. Estou tão cansada, mas mesmo assim falar este tempo todo soube-me bem. Não nos conhecemos, mas parecia que sim. Sinto-me mais leve." Ela e eu.
Estou sempre a dizer que não gosto de pessoas e não gosto de falar. É totalmente verdade, principalmente no contexto profissional onde estou inserida. Estou há 15 anos numa grande empresa e sempre me senti um peixe fora de água, e cada vez mais com o passar dos anos. É 'apenas' vida profissional, mas é a trabalhar que passo a maior parte dos dias, e onde conheço e tenho de falar com mais pessoas. Aos meus colegas não lhes reconheço qualquer interesse. Há exceções, sim, e são talvez três os colegas com quem consigo manter uma conversa. De resto, são pessoas de outro nível social e com interesses que para mim são fúteis e não merecem atenção. Como tal, fui ganhando fama de ser uma pessoa calada, acutilante, fechada.
Não tenho pachorra para conversas sobre maquilhagem, extensões, eletrodomésticos da Smeg, receitas da Bimby, unhas, roupas de marca, festas, jantares em sítios in, viagens caríssimas, casamentos, filhos, as amas dos filhos, o colégio dos filhos, o ténis e o futebol dos filhos, botox, cirurgias estéticas. Assim, não tendo nada a dizer e zero interesse em saber mais sobre esses temas, calo-me e ponho os phones.
Portanto, a Sanda desarmou-me completamente, e quem me visse julgaria até que sou uma pessoa normal, faladora e social.
Ainda ontem, quando ia sair do escritório, uma colega chata que anda sempre aos caídos em conversas na copa, lançou-me: "Tu entras muda e sais calada!" e eu atirei de volta: "Devias fazer o mesmo!", após o que ela se riu com aquele riso de quem não tem vontade nenhuma. Então, devolvi o cumprimento à Sandra: disse-lhe que assim a viagem passou rápido, também me diminuiu o cansaço, e que eu não costumo ser assim, faladora. "Já falei mais contigo hoje do que em muitos anos com as pessoas com quem trabalho". Acho que ela se sentiu bem.
Não tenho pachorra para conversas sobre maquilhagem, extensões, eletrodomésticos da Smeg, receitas da Bimby, unhas, roupas de marca, festas, jantares em sítios in, viagens caríssimas, casamentos, filhos, as amas dos filhos, o colégio dos filhos, o ténis e o futebol dos filhos, botox, cirurgias estéticas. Assim, não tendo nada a dizer e zero interesse em saber mais sobre esses temas, calo-me e ponho os phones.
Portanto, a Sanda desarmou-me completamente, e quem me visse julgaria até que sou uma pessoa normal, faladora e social.
Ainda ontem, quando ia sair do escritório, uma colega chata que anda sempre aos caídos em conversas na copa, lançou-me: "Tu entras muda e sais calada!" e eu atirei de volta: "Devias fazer o mesmo!", após o que ela se riu com aquele riso de quem não tem vontade nenhuma. Então, devolvi o cumprimento à Sandra: disse-lhe que assim a viagem passou rápido, também me diminuiu o cansaço, e que eu não costumo ser assim, faladora. "Já falei mais contigo hoje do que em muitos anos com as pessoas com quem trabalho". Acho que ela se sentiu bem.
Comecei por colocar a Sandra na categoria de pessoas estranhas, principalmente pela chamada de voz inicial, mas pelo tamanho do texto e por tanto que eu tenho a dizer sobre ela (e o post não lhe faz juz) acho que se vê que ela é tudo menos estranha. Apenas alguém que mal ou bem se tem safado num mundo filha da puta, com poucos recursos e muitas contrariedades. E ao mesmo tempo descubro também algo sobre mim: não odeio toda a gente. Acontece que conheço muita gente oca e desinteressante. E que, se trabalho há tanto tempo numa grande empresa que nem me paga o suficiente para eu largar o autocarro que me obriga a acordar às 04h, e se nem gosto das pessoas, nem do trabalho, se calhar é altura de ser mais Sandra, aprender a viver com menos e dar atenção ao que importa.
3 comentários
Por mais pessoas como a Sandra <3
ResponderEliminarQuando dizes que não conversas muito com colegas do trabalho, deves estar a referir-te aos actuais, porque, assim se repente, ocorre-me uma certa e determinada ex-colega, que o foi apenas durante alguns meses, mas com quem tiveste grandes interacções! Bom, eram mais monólogos dela na tua presença, do que propriamente diálogos, mas pronto... 🤭
ResponderEliminarPois, la está, interações há muitas! Conversas, há poucas, construtivas, quase nenhumas. Mas essa senhora bateu o recorde. Na altura, levava-me ao desespero. Com a distância dos anos, uma pessoa já se ri. Mas olha, deu post! https://palavrasdoabismo.blogspot.com/2018/05/pessoas-estranhas-100-gaja-mais-chata.html
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