Mudei(-me)

by - segunda-feira, maio 22, 2023

Foi há cerca de um ano que tomei a decisão. O meu fundo já o sabia, mas adiava. Tinha medos, receios, "e ses" infinitos, pés atrás. As noites sem dormir, de barulhos, buzinas, vozes embriagadas, ambulâncias pela noite dentro, derrapagens, rateres sem respeito às horas, à minha janela, foram o desgaste que precisava para dar o passo. O meu coração palpitava de assombros noturnos a todo o instante, e para além do mais, já não podia com os transportes lisboetas, as avarias, as greves, os atrasos, os suprimidos, as obras, o trânsito violento, a falta de calma, de educação, as sardinhas em lata, respirar sovacos alheios, peidos alheios, aguentar, aguentar, aguentar, para apenas repetir no dia seguinte. Vivia em sobressalto constante e sentia-me sempre esgotada. E, ainda, Lisboa não era a mesma que conheci quando, aos 18, vim do Alentejo para estudar e me deparei com ela. Em quase duas décadas, a cidade mudou de rosto e de sorriso. Deixou de ser uma terra nossa que queríamos mostrar aos outros com orgulho, para uma terra dos outros, os que podem pagar, com ou sem orgulho, um pedaço dela. E a cidade adaptou-se a eles, ao dinheiro, não a nós.

Então, após 19 anos a morar em Lisboa (e arredores), decidi ir embora e regressar ao Alentejo que me viu nascer e crescer. Fui embora, agradecida pelos ensinamentos da cidade, pelas vivências que me proporcionou, pelos meus amigos, pelas centenas de concertos, festivais, exposições, peças, e tudo o mais que me deu a conhecer e que me tornou a pessoa que sou. Do mesmo modo, se sou mais aberta, recetiva, com sentido de comunidade e empatia, é pela diversidade étnica, cultural e humana que Lisboa me proporcionou. Capital, continuo a gostar de ti, mas como em qualquer relação, gostar não basta.

A modos que me deu na veneta e disse: é agora. Não foi. Demorou muito, muito tempo. Os tempos estão maus, as casas estão caríssimas. Os créditos estão difíceis de obter, as taxas de juro estão pela hora da morte. No trabalho, lutava para que me deixassem ficar a trabalhar remotamente. Os serviços públicos falhavam, faltava sempre qualquer coisa, um papel, uma rúbrica, um comprovativo, uma bufa. Tinha de vender a casa na margem sul. Cismei que havia de tratar de tudo sem recorrer a agências, por dinheiro, ou falta dele, e consegui. Levei tempo, mas os astros acabaram por se alinhar.

Já cá estou há uns meses. Parece, agora, que nunca saí daqui, do litoral alentejano. A cacofonia da cidade, as noites sem dormir, as palpitações no coração e o stress parecem fazer parte de uma outra vida. Temia. As saudades dos amigos, o estar distante da ação, o ter tudo perto, ter tanto a acontecer. Não havia razões para tal, porque o isolamento e o silêncio estão a fazer milagres por mim, e os amigos, esses, ficam contentes por ter casa no Alentejo onde podem vir sempre que quiserem. Passei de ouvir os carros 24 horas por dia, junto ao trecho de estrada nacional que levava a Almada onde morava, para acordar com os pássaros e festejar com eles o fim do dia. Em vez de bêbados a vomitar e mijar nas paredes do prédio, recebo a visita de patos que já sabem onde comer a fatia de pão diária. Em vez de ter prédios como vista, agora consigo ver o nascer e o pôr-do-sol, a largura do céu em todo o seu esplendor naqueles tons de azul a jogar com o rosa. Em vez de atravessar a estrada e ter um hipermercado, tenho um jardim enorme de árvores frondosas com lagos e muitas espécies animais. No silêncio da noite, não me assusto com rateres, ouve-se antes as ondas do mar a rebentar lá longe. Em vez de lixo por todo o lado e cheiro nauseabundo nas ruas, agora podia comer do chão e cheira a flores e pinheiros. Não há filas ou multidões, não há trânsito, não há sequer um semáforo. E a comida? Nem se fala.

Tudo tem um tempo. No auge da minha idade adulta recém adquirida, era normal querer sair, descobrir, viver numa cidade grande, experimentar o que tinha de experimentar. E fi-lo. Com o passar do tempo, vamos dando importância a coisas diferentes. É normal. Atenção, que isto não é para todos. Há pessoas que nunca se iriam adaptar. Mas era o que alma e coração pediam, e não podia ignorar mais tempo. Cá, o tempo passa mais devagar e obriga-nos a estar connosco próprios. Se não se estiver à vontade com isso, não se será feliz aqui. Eu estou feliz. 

E, pasme-se, voltei a ter vontade de escrever. Até breve, provavelmente. 



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4 comentários

  1. Que bom voltar a escrever. Boa sorte nesta sua nova etapa

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  2. Espero que não apareça por aí nenhum lobitocha - homem-animal felpudo sempre interessado por fêmeas medievais com o cio.

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    1. Ahahahh! Bota Carvão! Se aparecer também não é o fim do mundo, tenho uma cena fixe para apanhar pelos de gato!

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