O futebol feminino e um orgulho desavergonhado

by - segunda-feira, junho 05, 2023

O vídeo da campanha BPI de apoio à seleção de futebol feminina, que tem tido tantas reações positivas e emotivas, trouxe-me à memória lembranças antigas e um motivo de orgulho que não tenho vergonha de celebrar.

Corria o ano de 1998, ou 1999. Era uma adolescente que praticava bastante desporto e que sempre gostou de futebol. O meu grupo de amigas e colegas também gostava, e era frequente andarmos de patins, de bicicleta, jogarmos à bola, ao elástico, e por aí fora. E conversávamos sobre como seria bom que o clube de futebol da terra tivesse uma secção feminina. Impulsionadas pelo espírito empreendedor de uma de nós, decidimos ir à sede do clube e perguntar o que seria preciso para a criar. Lá fomos, cinco meninas representantes da ideia. Receberam-nos, curiosos, meio reticentes, colocando entraves - que não havia verbas para nada, nem equipamentos, nem transporte, nem motorista, nem alimentação, que já era difícil para os rapazes, que não havia balneários femininos, não podiam pagar a um treinador, existiam poucos campos e a conciliação de horários era difícil. Portanto, uma missão improvável.

Fomos embora, mas em vez de esmorecermos, curiosamente, começámos imediatamente a pensar em formas de ultrapassar esses entraves. E se fizéssemos rifas? Vendêssemos bolos? Puséssemos um mealheiro nas lojas para nos ajudar? Se falássemos com as pastelarias e cafés a ver se algum nos patrocinava? E se os pais ajudassem e pudessem conduzir as carrinhas do clube, e dividir o combustível com os outros pais?

Acabámos por voltar noutro dia. Levámos alguns dos pais. Viram que estávamos realmente empenhadas. E as coisas começaram a materializar-se. Uma antiga glória do clube, o grande Belchior, homem que admirarei até morrer, estava presente e ofereceu-se para ser nosso treinador, sem nada em troca. Mais tarde, trouxe outra glória, o Patã, como adjunto. Um dos contactos que fizemos (julgo que era uma gráfica, mas a memória falha-me) aceitou patrocinar-nos e pumba, já tínhamos equipamentos. O Belchior, que estava por dentro de tudo, começou a mexer-se no sentido de encontrar buracos nos horários onde pudéssemos treinar e usar os balneários dos rapazes. Usou também os seus contactos para saber de outras equipas femininas do Alentejo que se dispusessem a jogar contra nós e fazer torneios. Começámos a treinar e a palavra espalhou-se. Raparigas das vilas e aldeias ao redor telefonavam ao clube, queriam saber se havia transporte para poderem ir treinar a Sines. Alguns dos pais disponibilizaram-se para as transportar. O meu pai era um dos nossos maiores apoiantes (bem-hajas, pai), e fazia tudo o que fosse preciso. Assim como a minha avó materna, viciada em futebol, que se empolgava demasiado e que me envergonhava mandando caralhadas aos árbitros e às jogadoras adversárias. Nos jogos, éramos recebidas com muita simpatia por todos os clubes, e em todos os jogos havia convívio depois, com muita comida feita pelas famílias das jogadoras, e nós retribuíamos nos jogos em casa. 

Foi uma época muito especial para mim. Senti-me parte de algo, senti-me realizada por fazer algo que amava, e muito orgulhosa por termos conseguido levar para a frente a nossa teimosia. 

Chegou a altura de rumar para a Universidade, e como muitas de nós tínhamos a mesma idade, tememos pelo futuro da equipa. A verdade é que, depois de partirmos, a equipa quebrou e houve um período de intermitências. No entanto, a equipa feminina do clube continua a existir e, das notícias que me chegam, está bem e recomenda-se. Quase 25 anos depois dos primeiros passos, o sonho de algumas meninas abriu portas para que as meninas de hoje possam ter um local e condições para praticarem futebol. Isso enche-me de orgulho e aquece-me o coração.

Apesar das adversidades e de algumas bocas que nos despejavam em cima, a maioria dos familiares e amigos das jogadoras sempre nos apoiaram, e não podem imaginar como estávamos e estamos ainda agradecidas por isso. No entanto, hoje, em 2023, ouço coisas como que não percebo nada de futebol, que devia era estar na cozinha. Que se foda a masculinidade tóxica, que se fodam todos os que se apegam a papéis tradicionais de género, que se fodam os machistas! Todos podemos ser aquilo que quisermos. Como eu, que, com 1,63m, fui guarda-redes. E competente. Quem diria?

Levo para as cinzas um apreço desmedido pelos misters Belchior e Patã, exemplos de paciência, entrega e aceitação. Pelo mister Dino, guarda-redes dos juniores e séniores, que se ofereceu para ser meu treinador de guarda-redes e me obrigava a fazer 500 abdominais e a correr na praia de areia grossa com ela pelos joelhos. Pelo Limão, que já lá mora, sempre disponível para atender às nossas lesões. Pelo clube inteiro, meu Vasco da Gama. Pelas famílias das jogadoras, que nem por um segundo ficaram de pé atrás por sermos mulheres a jogar futebol. E por cada uma das minhas colegas de equipa, com quem passei alguns dos momentos mais fantásticos de sempre.

Que nenhum sonho ou vontade se castre por causa do género com que se nasce.

E aqui estamos nós, para a posteridade.







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