Pessoas estranhas #120 - a beata do comboio

by - terça-feira, maio 07, 2019

Estava a ler o meu livrinho no comboio, a caminho do trabalho, quando reparo em movimentos estranhos e em burburinho vindos da pessoa à minha frente. Olhando de revés o melhor que pude, vi que era uma rapariga nova, com os seus 20 e poucos anos, e estava, nada mais nada menos, do que a benzer-se e a rezar. Agarrada a um terço e tudo. Mas não era noviça nem nada - pelo menos estava vestida normalmente.

Ora, apesar de achar a igreja uma palhaçada, não foi isso que me deu uma vontade incontrolável de rir. Cada um acredita no que acredita e qualquer sítio é bom para rezar - quantas vezes não ajoelhámos e rezámos onde deu vontade? Hum?

A questão é que, quando a rapariga se começou a benzer e tal, e ouvi o roçagar do terço nas suas mãos, tomei consciência de que a capa do meu livro - Samitério de Animais, de Stephen King - é uma cruz de madeira, bastante velha, num cenário sombrio, com trelas, correntes e teias de aranha penduradas. Não sei se ela reparou ou não (é provável, estava mesmo à minha frente), mas a associação de ideias começou a remoer e nasceu-me um riso sabe-se lá de onde, daqueles que tentamos reprimir mas que só fazemos pior e acaba por parecer que estamos a dar puns com a boca.

Quanto mais a rapariga fazia o burburinho da reza - bzzz bzz pecadores bzzz hora da nossa morte bzzz - mais vermelha eu ficava, do esforço para não soltar a gargalhada, que já tinha passado a fase embrionária e estaria perto de dar à luz. A coisa podia não ter nada a ver, ela podia estar a pedir ao seu deus para a ponte não cair, para não haver avarias na linha, por Moçambique ou para dar uma queca em breve.

Felizmente controlei-me, com os ensinamentos do ioga - respira pela barriga, deixa-a inchar como um balão, conta os segundos da inspiração e faz com que a expiração seja o dobro, blá blá blá - mas mesmo assim deixei escapar a lágrima da vergonha e o nariz ficou um tanto ou quanto ranhoso. Mas consegui. Consegui, sem chegar a rezar para não deitar uma pinga de mijo. A culpa disto tudo é do Stephen King.


You May Also Like

0 comentários