Onde te vês daqui a 10 anos?

by - terça-feira, julho 14, 2020

Odeio que me façam esta pergunta. A típica pergunta que os Recursos Humanos das empresas usam para medir a tua ambição e sanidade mental, ou que alguém lança para o ar para fazer conversa de encher chouriço e aproveitar para te analisar. O que mais odeio na pergunta, é que as pessoas não estão preparadas para as respostas que não lhes agradam, ou que não encaixem nos parâmetros do socialmente correcto. E também não estão preparadas para ouvir um "em lado nenhum". Porque todos temos de planear uma década da nossa vida, e o viver um dia de cada vez está fora de moda.

Para além disso, estamos a falar de que cenário, quando não mo dizem? Onde me vejo daqui a 10 anos, o quê, profissionalmente? Na minha vida privada? Num cenário pós-apocalíptico? Num cenário super optimista ou assim-assim? É para ser realista ou para apontar aos píncaros da lua? Ora vou deixar aqui reunidos os meus cenários para quem é assim tão curioso:

Onde me vejo daqui a 10 anos? 

O cenário super-optimista
Ganhei o Euromilhões. Vivo numa casa grande e isolada, com piscina natural, ginásio, biblioteca, grandes zonas verdes. Passo o dia a nadar, a ler, a apanhar sol, a fazer ioga, a malhar, a fazer ponto cruz, a ver filmes e séries. Tenho quem cozinhe para mim, quem me massaje, quem limpe a porcaria que faço. Basicamente, dou emprego a muita gente. Tenho um santuário de animais e sanitas inteligentes que me lavam o rabo.

O cenário pós-apocalíptico
As pessoas não mudarão os seus comportamentos e o planeta estará à beira do abismo. Vejo-me a usar uma botija de oxigénio para sair à rua e óculos especiais para ver através da densa poluição. Os zombies são uma realidade - o dióxido de carbono e os raios ultra-violeta criaram uma nova doença que nos come o cérebro e que nos faz querer comer cérebros, e quando visto o meu fato de astronauta para ir buscar mantimentos às Forças Armadas é uma trabalheira fugir a esta gente. Uma pessoa dá-lhes o dedo, eles querem logo comer o braço.

O cenário pessimista
Estarei morta. 

O cenário que a sociedade quer que eu tenha
Terei quatro crianças ranhosas, dois casalinhos, o Martim, o Bernardo, a Maria Leonor e a Beatriz. Vivemos numa casinha branca com sebes brancas rodeada de rosas brancas, vestimos de branco, bege e azul bebé. Serei dona de casa sem vida própria, levando as crianças ao colégio privado, à natação, ao futebol e ao ballet. Terei uma empregada colombiana e ligeiramente obesa que passa o dia a limpar as minhas pratas. O meu marido será doutor e o meu cão será de raça. À noite, às escondidas, vou fazendo cortes profundos na pele, sangrando e mascarando a minha dor.

O cenário que os Recursos Humanos querem que eu tenha
Imagino-me aqui, nesta empresa, porque é tão fantástica. Contribui tanto para a sociedade, dá emprego a tantas pessoas, e quero, daqui a 10 anos, continuar por cá. Quero ir subindo na carreira, gradualmente, com mérito, nunca de joelhos debaixo de um vão de escadas. Quero fazer o meu caminho, sem passar por cima de ninguém. Com muito trabalhinho, muitas horas, muito stress, porque eu adoro stress, só sei funcionar sob pressão. Quero equilibrar a minha vida pessoal e profissional, claro, mas o que eu gosto mesmo é de trabalhar, fazer coisas, motivar os os outros, e não me importo nada de fazer noitadas para fazer as coisas acontecer. Posso descansar quando morrer! E depois vou reencarnar numa pessoa que aproveita a vida, por isso não há problema!

O cenário realista
Vou continuar a ter um trabalho de rabo sentado à secretária o dia todo, terei dores na coluna e nas articulações. Estarei sempre a poupar para dar algum peidinho que seja. A maior parte dos dias custar-me-á levantar da cama para mais um dia igual aos outros. Continuarei a odiar pessoas. Terei mais cabelos brancos e rugas. Estarei mais perto da morte.


Desculpem lá não ter uma resposta digna e estruturada a essa pergunta. Não consigo pensar tão adiantado. Se for falta de ambição, que seja. Se calhar não sonho muito alto para a queda não doer. Sei que quero visitar tais países, comer tais comidas, ler tais livros. E isso basta-me. A vida não tem de ser um projecto ou um guião. Acordar é uma vitória, depois logo se vê.


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