O que é que o trabalho nos está a fazer?

by - quarta-feira, maio 01, 2019

Hoje celebra-se o Dia do Trabalhador, data que assinala grandes vitórias pelos direitos dos trabalhadores em todo o mundo. Mas, mais de 100 anos depois da greve iniciada em Chicago pela redução do horário de trabalho, que na altura chegava às 17 horas diárias, continuam a existir e a surgir novos problemas.

Não tenho qualquer dúvida de que o trabalho mata. Não estou a falar de acidentes de trabalho ou de situações infelizes que ocorrem no caminho de e para o local de trabalho. Falo sim do stress, das palpitações, da falta de sono, das correrias, dos prazos, das más posturas, da tristeza que advém das injustiças, do mau ambiente, das más relações, das más pessoas, da falta de educação. Quem é totalmente feliz com o seu trabalho, com os colegas, com o horário, quem consegue conciliar a sua vida pessoal, vivendo comodamente, não tem noção da sorte que tem. Eu não conheço nem uma pessoa nessa situação.

A triste realidade é que o cidadão comum tem de trabalhar para viver. Vivemos uma infância fugaz e começamos logo a estudar para que possamos entrar com sucesso no mercado de trabalho, para logo pagarmos impostos, subscrever serviços, comprar bens essenciais ou não, pagar prestações, consumir, consumir, consumir. E isto até cada vez mais tarde, até já não termos energia nem saúde para aproveitar o merecido descanso. 

Sentir-mo-nos úteis é bom. Ganhar dinheiro e ter independência é bom. Mas lembrem-se: um trabalho é só isso mesmo - trabalho. Não façam dele o centro da vossa vida nem o levem para casa. Nem as tarefas que ficaram por fazer, nem a zanga com a colega azeda, nem o aumento que não vem, nem a displicência do chefe, nem os prazos impossíveis. Assim que bater a hora de saída, digam adeus, amanhã também é dia, o sol vai nascer e pôr-se na mesma, respirem fundo, acabou, agora é que o dia devia começar. Até porque depois do trabalho há transportes para apanhar, as compras do supermercado para fazer, refeições e marmitas para preparar, limpar um pouco para não meter nojo, e a roupa não se lava sozinha. No intervalo disto tudo está a vida - mas qual vida? Ansiamos e esperamos as folgas, sonhamos com as férias o ano todo, e depois tudo passa num sopro, rapidinho, e ao domingo já estamos a sentir a depressão do que aí vem.

E depois há os parasitas do trabalho - aqueles que não deixarão que as coisas mudem. Especialistas em lamber-rabos-de-chefe, conversa fiada, exímios vendedores de si próprios, apontam os holofotes do sucesso para o espelho e vivem o trabalho como se fosse uma competição da qual fossem sempre vencedores. "Eu fui o que saí mais tarde ontem!", ou "tive de trabalhar o fim de semana todo..." dito de peito cheio, num misto de auto-reconhecimento, pancadinhas nas costas, parabéns, és o mais esforçado, sem ti não éramos nada, dias sem sol, carros sem pneus, florestas sem árvores. Se trabalhassem num país nórdico e saíssem depois das 17h seriam despedidos por falta de organização e eficiência, mas chiu, deixem lá as catatuas.

Às vezes acordo a meio da noite a pensar num ficheiro que devia ter enviado e que me esqueci. Às vezes o meu coração bate tanto no peito que parece que vai sair, voar e emigrar. Às vezes os atrasos nos transportes ou as greves estragam-me o dia todo. Às vezes as tarefas que tenho para fazer não me cabem na cabeça nem no papel. Às vezes chego tão cansada que já não consigo ter tempo para mim. Muitas vezes desejo que os meus colegas morram, que aquele edifício arda, que lhe bata um avião, que haja uma ameaça de bomba, um surto de pulgas, só para parar. Muitas vezes imagino-me a bater nas minhas colegas putarronas, a empurrá-las do terraço, ou sonhando que se afundam numa piscina do seu próprio e excessivo perfume e malvadez. Muitas vezes sonho acordada, que ganhei o Euromilhões e mando despejar uma tonelada de merda naqueles pisos, ou que estou nas Maldivas, em vez de naquele ambiente fechado de ar condicionado e com víboras à solta. E vale a pena perder o meu precioso tempo com isto tudo? É claro que não.

Por isso, sim, sejam responsáveis, ganhem o vosso, mas tenham uma vida própria. Vivam para vós, para o que vos dá prazer, aproveitem o tempo livre para viver, e não para acabar um powerpoint ou apagar mais um fogo que alguém se lembrou de acender cinco minutos antes da hora da saída. Porque o trabalho nos está a matar, e um dia, quando não tivermos dias, vamos querer todos os minutos que desperdiçámos a dar ainda mais dinheiro a quem já tem muito e para os quais somos apenas mais uma formiga. Lutem pelas pessoas que são - o trabalho é só uma parte disso -  não deixem que vos coma vivos. Há um mundo por descobrir, viagens por fazer, culturas para aprender, cenários incríveis que temos de ver antes de morrer, filmes fantásticos, séries que nos prendem, livros que nos marcam, música que nos toca, pessoas que nos movem, tanta comida por experimentar, tantos sabores para apreender, causas para lutar, tanto sol para nos queimar, e chuva para refrescar, e árvores por plantar, e animais para amar, e passeios e estradas sem fim, verde de encher a vista, azul de céu infinito, o vento na cara... E nós num escritório. Foda-se.


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2 comentários

  1. Li com toda a atenção e concordo. Viva o meu ponto cruz, os meus livros, as boas conversas com o rapaz lá de casa e com amigos (mesmo que sejam internauticos desconhecidos, com quem temos a maior das afinidades), os passeios e os sonhos e os etc que preenchem a nossa vida quando batemos com a porta.
    Também sonho com trabalho e aquele ficheiro não enviado ou excel que ficou a meio... mas a bem da minha sanidade mental acordo-me (sim, eu faço isso) e viro-me para o outro lado.
    Gosto tanto de passar por aqui.
    Boa tarde
    P.S. Embora o Euromilhões seja muito milhão prometa-me que não o desperdiça com o carrego da dita para deitar no prédio ou nos colegas :-)

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  2. Obrigado por passar por cá e pelas palavras :) quanto ao euromilhões, pode ficar descansada pois não gastaria nem um cêntimo a dar importância a quem não a merece. Beijinho!

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