Pessoas estranhas #128 - José António Saraiva (pela segunda vez!)

by - segunda-feira, outubro 21, 2019

Devo ter encontrado a pessoa mais estranha do universo para vir parar aqui pela segunda vez, e devido a um tema diferente. Esta foi a primeira, quando o senhor arquitecto chamou de débeis mentais aos transexuais. Agora, encontramo-nos aqui, de novo, devido a esta fantástica opinião. Mas vamos por partes.

O senhor começa por falar de gastronomia. Diz que os hambúrgueres e as cozinhas estrangeiras não são necessários em Portugal (diz mesmo que "não fazem falta nenhuma"), visto termos uma gastronomia muito rica. A seguir diz que não é fundamentalista e que gosta de ir ao chinês, e ao italiano e aos hambúrgueres. Só não gosta de sushi, pois enjoou-se no Japão. 

Não percebo a esquizofrenia das declarações. Foi uma tentativa de ser nacionalista e defender o que é de Portugal? Que o cozido e os estufados, e o peixe grelhado, o bacalhau à brás é que são a cena legítima? Foi uma piscadela de olho ao PNR? Mas depois pensou melhor, e na eventualidade de algum leitor o ver a comer Chop Suey de vaca, fica registado, em sua defesa, que não é fundamentalista. Que o que é nacional é que é bom, mas um gajo ir às chinocas de vez em quando não tem mal. Chupar um McFlurry e um hambúrguer importado é na boa, se tivermos pernas de jamon nacional penduradas no tecto.

Depois, da gastronomia esquizofrénica passamos à pura estupidez. O senhor arquitecto diz, já que estamos a falar de hambúrgueres, by the way, que viu um casal mesmo estranho numa casa de hambúrgueres em Algés, vindos desse antro nojento que é a Comic Con.

"Ao meu lado estava um jovem casal, de cerca de 20 anos, ambos andrajosamente vestidos. Ele com um boné enfiado na cabeça, uma barba descuidada, uma t-shirt e uns calções que pareciam apanhados no lixo e umas sapatilhas gastas. Ela demasiado gorda para a sua idade, com uma roupa justa e sem graça que lhe ficava pessimamente."

O nosso querido senhor arquitecto afinal é uma pessoa que sabe muito. Sabe que as pessoas, quando vão para festivais andar o dia inteiro à torreira do sol, deviam no mínimo levar um fato saia-casaco que tape a maior parte da pele nojenta dessas gordas. Deviam andar cheirosas e de salto alto - todos sabem que as gostosas não suam nem têm calos. Gajos sem gravata deviam simplesmente falecer. Pelo menos a barba por fazer ficaria melhor no rosto cinzento da morte. Gente nojenta esta, que acha que pode comer um hambúrguer vestidos com tralha da Primark e com pele à mostra. Gente sem nível que anda por Algés num festival e que se mistura nas casas de hambúrgueres da zona com as pessoas de bem. Gente que anda de transportes, a tocarem uns nos outros, nojo, vómito.

Agora, o senhor arquitecto tem uma saída de génio, dizendo que os incêndios e os festivais são um flagelo para o nosso país...

"Os incêndios são um flagelo desta época do ano. Devastam a floresta e destroem a vida de muitas famílias. (...) Quanto aos festivais (de música e outros), são uma autêntica praga. Antigamente, a música no Verão resumia-se aos cantores pimba (...) Então, inventaram os festivais para a ‘malta urbana’, ‘culta’, ‘erudita’. (...) Ora, olhamos para essa ‘malta’ e o que vemos? Vemos aquele casal mal vestido que não troca uma palavra. Vemos gente maltrapilha, sem aprumo, aparentemente sem interesses, agarrada ao telemóvel, que vai aos festivais não para ouvir música mas para se excitar."

Primeiro, meter os incêndios e os festivais no mesmo parágrafo devia ser suficiente para o meterem num lar. Mas tá tudo parvo? Comparar um verdadeiro flagelo que mata, que destrói, que muda negativamente a vida de tanta gente, a um festival? Ele poderá achar que a música de hoje em dia é um flagelo, estaria no seu direito, mas muito, muito longe, de poder ser enfiada no mesmo saco.

E volta ao mesmo assunto - o casal mal vestido. O senhor arquitecto devia ter tirado umas cadeiras de moda na faculdade e só não o fez porque o iriam chamar de panasca. Assim, vinga-se agora nas suas "crónicas" sexualmente reprimidas. Não nego que há pessoal que vai para os festivais e que fica a olhar para os telemóveis - também não gosto - mas ficar ofendido porque as pessoas vão mal vestidas é o cúmulo da panasquice. O senhor arquitecto só vai às casas de fados mais distintas de Lisboa, com o lencinho impecável a sair do bolso do fato, e não admite nada menos do que isso. Prometo ter isso em consideração, e levarei já para o meu próximo concerto o meu vestido Gucci e o meu sapato Prada. Isto depois de ter ido ao cabeleireiro e à manicure - as mãos que vão comer os canapés e beber o Martini têm de estar impecáveis. Se uma pessoa pobretanas qualquer meter conversa comigo fingirei que não existe. Gente de tshirt, que horror, que pardieiro.

Para terminar, o senhor manda um número recorde de pérolas em tão poucas linhas:

"De facto, muita da música que se toca nos festivais não é bem música: é ruído. Um ruído tremendo, assustador, destinado a excitar as multidões. As pessoas ficam em transe, abanam os corpos, gritam, como se estivessem num exorcismo. Tenho dificuldade em imaginar como será o mundo amanhã. Não vejo que com aquela gente se faça alguma coisa de jeito. Gente que só quer pão e circo: comer, beber e excitar-se com doses bombásticas de música ao vivo. (...) E às vezes snifar e aspirar umas ‘linhas’. Sem esquecer o sexo quando não há mais nada para fazer."

Drogados, todos drogados! Essa gentalha que ouve música rafeira só quer snifar e foder! Badamecos! Andam ali a esfregar a tesão uns nos outros, todos possuídos pelo diabo! Safadeza! Ah, antigamente é que era, só se fodia para procriar, no escuro, e com roupa vestida!

Foda-se, foda-se. Bem, numa coisa tenho de dar a mão à palmatória - às vezes, num concerto, eu própria pareço estar a ser exorcizada. Mas acho que qualquer pessoa que gosta de música percebe que às vezes sentimos tanto o momento que os gestos nos escapam, e sim, parece que temos o diabo no corpo. A música é transcendente e é para sentir, e para dançar como se ninguém estivesse a ver. Mas quem levar o senhor a sério, parece que ir a um festival ou a um concerto é a coisa mais decadente desta vida. É ali que as pessoas são levadas para a má vida - prostituição, sexo explícito, drogas e mais drogas a rodar, e fica tudo deprimido, com falta de um sentido para a vida. É ali que se formam pessoas irresponsáveis, sem futuro, onde, ainda por cima, se vestem com qualquer trapinho.

Se a conotação de velho do Restelo assenta a alguém, é a José António Saraiva. E isto, para mim, não é um artigo de opinião, é uma declaração de ódio. É a antítese de tudo o que devemos ser - tolerantes, principalmente. E é também perigoso, como todas as vezes em que espalhamos ódio. É falar com desconhecimento de causa, baseado apenas no seu instinto, que infelizmente expirou em 1870.

E agora, o que faço? Vou a concertos e festivais, pulo e grito como se tivesse o diabo no corpo, mas estou confusa. Tenho um emprego de segunda a sexta, tenho uma casa, um carro, faço voluntariado, contribuo para diversas causas, tento ser activista o mais que posso, nunca snifei sequer. Ah, mas espera. Visto-me pobremente, não me maquilho, corto o meu próprio cabelo, não vou à manicure. Tinha de ter algo de errado comigo. Que vai ser do planeta?

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