Razões de viver e de morrer

by - quinta-feira, janeiro 17, 2019

"Estás a gozar, não estás? Só podes estar a gozar.

Porque é que haveria de estar a gozar?

Tu não queres morrer.

Também não quero viver.

É melhor estar vivo do que estar morto.

Dá-me uma razão.

Sei lá. Estares vivo para ires à praia no Verão.

O sol faz-me mal à pele.

Para tomares conta dos teus filhos.

Não tenho filhos nem quero tê-los.

Dos teus sobrinhos.

Sou filho único.

Para leres um bom livro.

Já te disse que detesto ler.

Ou veres um bom filme.

Os filmes roubam-nos a imaginação.

Para usufruíres dos prazeres da mesa.

Comer dá-me gases, tenho um estômago fraco.

Dos prazeres da cama.

Tenho um pénis pequeno e sofro de ejaculação precoce.

Porra, disse eu, quase a gritar, e que tal para poderes respirar? E sentires o calor do sol, e o frio da noite, e saboreares um fruto, e poderes olhar para as estrelas e perguntares-te que raio andamos a fazer aqui, e sentires medo e dúvida e esperança e aquelas coisas todas que as pessoas sentem quando não estão fechadas nas suas cabeças a tentar resolver uma equação impossível?"

in Ensina-me A Voar Sobre os Telhados, de João Tordo (2018) 

 

O que é certo é que as minhas razões de viver não são as tuas. As tuas dores não são as minhas. Não quer dizer que não as compreenda, mas tenho as minhas, que também doem, moem, e me distraem das tuas. Os nossos problemas são sempre maiores no nosso íntimo que os problemas dos outros. Mas acredito que cada um de nós lá terá as suas razões para se levantar da cama. Às vezes não são óbvias e não chegamos logo lá. Às vezes demoramos dias, meses, anos, a perceber. Às vezes, enquanto esperamos que se faça luz, faz-se mais negro. Às vezes, também, complicamos demais. Podem não existir razões efectivas mas há decerto sensações e sentimentos a que nos podemos agarrar. Nem que seja o sabor daquele gelado fresco num dia estupidamente quente. Um nascer do sol com um degradé perfeito de cores no horizonte que nos deixa colados ao chão. Ler os nossos Saramago, e José Luís Peixoto, e João Tordo, e Afonso Cruz, e o Camilo, e o Eça. Correr até as pernas tremerem e inspirar o ar às golfadas. O primeiro mergulho do ano. As nossas razões não têm de ser muito complexas, nem têm de se projectar a longo prazo. Viver é só sentir. Um dia de cada vez.

PS: desabafo inspirado nas palavras de João Tordo. Vale a pena lê-lo.


 

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