Pessoas estranhas #133 - os especialistas do Facebook

by - sexta-feira, dezembro 11, 2020

O Facebook vai de mal a pior. Antes, era como uma sala de espera onde todos os desocupados passavam o tempo a fecar* a vida dos outros, a postar selfies mostrando quão bem na vida estão (antes de chorarem no canto da sala em posição fetal), ou a ver memes (eu). Agora, é como um consultório onde todos os desocupados são especialistas. Devido aos tempos que correm, o que mais se vê são virologistas, cientistas, médicos, enfermeiros e assistentes de saúde que tiraram o curso de mantinha polar em cima do regaço repousando na chaise longue emborcando leitinho quente em frente à TV e smartphone na mão.

Já nem falo dos movimentos "Pela Verdade", esses seres que vivem apenas e só para serem do contra, espalhando desinformação e fazendo os pobrezinhos que não estiveram atentos na escola salivarem por um bom escândalo. Quem acredita nessa gente, coitadinhos, benza-os deus.

Em cada post de uma notícia relacionada com saúde, eles lá estão. Os especialistas de chaise longue sabem tudo sobre as vacinas - que os velhos deviam tomar primeiro, que os ministros é que deviam tomar primeiro (a ver se morrem de efeitos secundários), que são uma mentira, que são a salvação, que nunca chegarão, que não são eficazes, que são um esquema da China para acabar com o resto do mundo, que a da Pfizer é a melhor, que a da Moderna é que é, que vai ser só para ricos, que vão dar aos pobres para os matar, afinal vão dar aos velhos para os matar e poupar em reformas, que não devemos acreditar na comunidade científica porque da cura também se morre.

Sabem tudo sobre o Covid-19, aliás, já o sabiam bem antes de todos nós. Para o resto do mundo foi inesperado, mas os especialistas de chaise longue sabem exactamente de onde veio, que foi fabricado na China, afinal foi na França, afinal foi na Itália, que é um embuste, que é a pior cena do mundo, que é irrelevante, que as máscaras deviam ter sido usadas desde o início, que as máscaras não fazem nada. Sabem perfeitamente que amontoados à porta da tasca não há risco de transmissão, nem em família, as almoçaradas são demasiado boas para perder ("não posso almoçar com a família toda? as pessoas andam de transportes públicos por isso eu faço o que eu quiser!"). De repente, estes especialistas ficaram cientes que existem mais doenças no mundo, doenças que até março nunca tinham entrado nas suas conversas - então agora não há mais doenças? E as pessoas que morrem de gripe, AVC, de cancro, de fome, de alergia à pulga? 

E claro, surgiu-lhes agora uma nova costela - a política. Não sei como é que a abstenção é sempre tão enorme, porque toda a gente domina o assunto. Só não saem à rua para votar porque o cu está decerto colado à chaise longue de tanto trabalharem sentados nas redes sociais. Todos concordamos que a economia está na merda, mas eles sabem-no melhor. E sabem que não há apoios suficientes, mas que deviam mas é ir trabalhar em vez de esperarem apoios, que a restauração e a hotelaria estão a sofrer, mas que há muita obra por aí e cimento para fazer, que devia fechar tudo, mas que não devia fechar nada, que as medidas são insuficientes, mas ficar em casa a partir das 13h é chato, que as pessoas deviam ficar em casa, mas devia ser possível ir à bola, que devíamos fechar a fronteira, que devíamos abri-la toda a ver se pingava algum, que o Natal deve ser recatado, que o Natal deve ser como o bacalhau - com todos.

Sempre estive farta de pessoas, mas desde que andam com muito tempo em mãos que estão ainda mais insuportáveis. Não há cortesia, não há benefício da dúvida, não há conversas produtivas, trocas de ideias saudáveis, nada. É tudo uma luta muito intensa entre pessoas que não sabem nada e ainda influenciam outros, criando uma bola de neve suja e triste de desinformação e acusações feias. Vá, deixem-se de merdas. Vocês não são especialistas em saúde e muito provavelmente nunca o irão ser. Dediquem-se àquilo em que são bons (verter veneno nas redes não conta) e deixem esses assuntos para quem sabe. Senão:



*Só os alentejanos devem saber o que é fecar. Lê-se "fécár" e é, digamos, olhar de modo coscuvilheiro, sem sequer tentar disfarçar.

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5 comentários

  1. Já aprendi uma palavra nova :)
    E valham-me os esquemas grátis de ponto cruz (única razão para ter voltado). Assumo a minha costela cusca... mas recuso-me a acreditar nas "verdades" que por lá aparecem! Demasiado cientista de sofá... basto eu, desportista de sofá... o meu sofá não aguenta qualquer outra actividade :)
    Bom fim de semana

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  2. Ahah verdade, a minha actividade também passa muito pelos grupos de ponto cruz. Temos de ser muito selectivos ou acabamos minados por estes especialistas... Bons bordados, beijinhos!

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  3. Dream Crusher, desejamos um Bom Natal 2020 com saúde
    e uma entrada em 2021 com pezinhos de lâ:-)
    Paula e Rui

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  4. Gostei de ler o texto, regressei ao Facebook só par seguir escritores e músicos, aliás foi esta rede social que me informou que o Harold Budd, um dos meus músicos favoritos tinha falecido com covid, o silêncio sobre ele neste cantinho à beira-mar plantado deixou-me perplexo, mas depois recordei-me da programação/informação televisiva oferecida à plebe e ainda fiquei mais triste com o país onde vivo.
    Gostei de ler este texto e concordo inteiramente com ele.
    Aproveito para desejar um Ano 2021 melhor do que este que agora termina.
    Rui

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    1. Verdade... As coisas que importam são mascaradas por uma porção de desinformação, raiva, ódio, mesquinhez, e por aí fora. Que seja um óptimo ano para vocês, e que o mundo seja mais tolerante, compreensivo e empático.

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