Palavras do Abismo

Estava curiosa para ver o Frankenstein pela mão de Guillermo del Toro, e no geral não me desiludi. A sua estética característica está lá, a produção é excelente, assim como as interpretações dos atores, e até mesmo a adaptação do livro de Mary Shelley é bem feita - talvez a melhor das adaptações Frankenstein. 

No entanto, tenho uma crítica a fazer (e que ninguém perguntou): o monstro é bonito.

É suposto o monstro criado por Victor Frankenstein ser grotesco, provocar repulsa ao olhar, medo, pânico. No fundo, ele é feito de cadáveres e órgãos alheios; quer-se que seja fisicamente anti-natura, feio, uma anormalidade. Este "monstro", no entanto, pareceu-me saído de um Fantasma da Ópera ou de um filme da Disney, o que mudou o meu sentimento ao ver o filme - deixou de me parecer um monstro para parecer um adulto infantilizado. 

A humanização do monstro é algo chave para a narrativa, sim, mas em termos psicológicos e não físicos. Caso contrário, quase nos esquecemos da origem nefasta da sua existência. Ao tornar o monstro bonito, a empatia surge mais rapidamente do que era suposto e a ideia de Mary Shelley (quem é o monstro - a criatura ou o criador?) perde alguma força. Sentimos mais pena do que medo, menos desconforto, menos impacto emocional. Simplesmente, se a criatura é bonita, não será uma falha assim tão grande no conflito ético / científico que domina o início da sua criação.

Se calhar estou a pensar demais, mas que dizer, olhem bem para estes beiços carnudos e cabelo à D'Artagnan.




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Sou a maior fã da cor preta, mas acho que é uma parvoíce pintarem rosas de preto. Para além de se estar a modificar algo que a natureza nos dá só para encaixar numa decoração de uma festa, a maioria das tintas usadas são tóxicas, deixam a rosa mais quebradiça, murcha mais facilmente e deixam manchas.

MAS eis que descobri que existe uma zona da Turquia onde as rosas nascem pretas. Só acontece na aldeia de Halfeti e em mais nenhum lugar do mundo. Na verdade, a tonalidade é preta quando florescem e conforme vão crescendo ficam de um vermelho profundo muito, muito escuro, que à vista desarmada parece preto. Isto tem a ver com as características do solo, o seu pH, minerais, etc, que ali proporcionam condições únicas para que isso aconteça.

O mais engraçado é que descobri isto num episódio do Catfish, na MTV, devido a uma miúda que se encantou por um miúdo da Turquia. Ainda dizem que não se aprende nada em dating shows.

Mas vá, agora não vão todas malucas a correr para Halfeti para ver as rosas, deixem-nas estar - se o sítio se encher de turistas, provavelmente as condições ideais que agora permitem este "milagre" vão deixar de existir.



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"Bunny inspira o cigarro e sopra uma sizígia de anéis de fumo - um, dois, três -, depois alarga o último com o indicador e diz, como que num sonho:
- A Georgia dos olhos violeta."

in A Morte de Bunny Munro, de Nick Cave (2009)

O que é sizígia?

sizígia
nome feminino
1. [Astronomia] Conjunção ou oposição de três ou mais corpos celestes (ex.: os eclipses solares e lunares ocorrem durante sizígias; sizígia entre uma estrela e dois corpos celestes).
2. [Astronomia] Conjunção da Terra, da Lua e do Sol, na lua nova e na lua cheia, quando as marés altas são maiores e as marés baixas são menores, que provoca as chamadas marés de águas vivas (ex.: maré de sizígia).
3. [Psicologia] Par de duas coisas ou de dois conceitos em oposição.

in Dicionário Priberam

Portanto, podemos dizer que sizígia é utilizado para descrever o alinhamento de três corpos celestes num sistema gravitacional. Apesar de ser formalmente utilizado em astronomia, pode ser utilizado de forma metafórica, como fez o bom do Nick. Neste caso, os três anéis de fumo do cigarro gravitam, efémeros, como planetas em órbita do seu criador. Se quisermos um exemplo da vida corriqueira: imaginemos uma mulheraça que tem dois fãs que não a largam. Formam uma sizígia - bem chata - gravitando em torno da criatura.

Nestes casos, não seja sizígico.





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Mas que epidemia é esta que se apoderou do comentário televisivo? Volta e meia, que é quase todos os dias, ouço a pérola "parece-me a mim" em programas de televisão, especialmente no comentário desportivo (mas não só).

Quão estranhas são estas pessoas para se referirem a si próprias duas vezes na mesma frase? "Parece-me" já contém o sujeito - o "-me" indica que se estão a referir a vocês próprios. "Parece-me a mim" é portanto um erro e uma redundância. Nós estamos a ouvir-vos falar, vemos a vossa boca a mexer, sabemos de antemão que estão a transmitir a vossa opinião, e o "parece-me" é mais do que suficiente.

"Parece-me a mim" que falta brio na comunicação e no uso da língua, ou talvez haja apenas uma necessidade narcísica de reforçar a própria existência.



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No Japão, as fotografias que constam nas embalagens de produtos alimentares têm de os reproduzir tal qual eles são. Isto inclui o tamanho real do produto - por exemplo, se for um pacote de bolachas em que elas têm 5cm, na fotografia da embalagem têm de ter 5cm. Não existem aquelas mensagens que estamos habituados a ver, como "imagem ilustrativa" ou "sugestão de apresentação". 

Isto faz parte da lei "Act against Unjustifiable Premiums and Misleading Representations", criada em 1962, e que tem como objetivo proteger o consumidor de rótulos e publicidade enganosos. Não acho mal - what you see is what you get.

Dei aqui uma volta aos armários e não encontrei uma única embalagem que reproduzisse fielmente o conteúdo. Tenho um pacote de bolachas de limão e chia, em que aparece um limão em ponto pequeno. PROIBIDO. Tenho umas bolachas de canela em que a fotografia das mesmas na embalagem equivale mais ou menos a metade do tamanho real. PROIBIDO. Tenho uma embalagem de pistachios em que eles estão bem maiores do que são na realidade. PROIBIDO. Tenho um ice tea em que aparece uma manga cortada num tamanho irreal. PROIBIDO. Tenho uma embalagem de tostinhas que mostra uma gigante com uma fatia de presunto em cima. PROIBIDO. Tenho um Kit Kat de avelã que mostra uma barrinha cortada ao meio com praí o triplo do tamanho (sacanas). PROIBIDO.

Se tivéssemos uma lei como esta, as marcas gastariam milhões a refazer embalagens. Mas ao menos acabava-se esta bandalheira de nos venderem sonhos em formato familiar.




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Entrei numa casa de banho pública. Tinha um livro azul equilibrado em cima da cabeça. Olhei para o espelho, reparei nele, e pousei-o na bancada. Vi que todas as cabines estavam ocupadas, mas havia uma sanita sem cabine disponível. Estava ali, em espaço aberto, bastante visível, mas não hesitei - puxei as calças para baixo e sentei-me a urinar.

Nisto, um amigo aparece e disponibiliza-se para ficar à minha frente, para tapar possíveis olhares. Mas fica de frente para mim, conversando animadamente. À medida que as pessoas vão saindo das cabines, também se vêm colocar à minha volta para tapar eventuais olhares, sem no entanto evitarem elas próprias olhar. Nada daquilo me incomoda.

Acabo o que estou a fazer, vou de novo para a frente do espelho (entretanto toda a gente desapareceu) e volto a equilibrar o livro em cima da cabeça. Saio, sem lavar as mãos. Um dia normal no mundo dos sonhos.

Contei o sonho ao meu amigo, e ele pediu uma interpretação à AI. Resumidamente, considerou o meu amigo como um porto seguro com quem posso ser vulnerável (e é). A não lavagem das mãos foi interpretado como tendo aceitado a vulnerabilidade e seguido em frente (para mim é só badalhoquice). Quanto ao livro na cabeça, é visto como uma tentativa de manter uma boa postura perante os outros (para mim foi um lembrete que tenho de ir devolver os livros à biblioteca). 

Entretanto, já fui devolver os livros. Ainda não lavei as mãos.


Parca tentativa de recriar o momento com Gemini

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Habitualmente refugio-me na ficção literária para escapar à realidade, que é bem mais dura e inacreditável. Decidi munir-me de um estômago forte e ler este livro. Acreditem, foi necessário.

Pelas coisas que vamos vendo nas notícias, a maioria de nós tem a noção de que Putin é desumano. No entanto, é muito mais do que isso. É todo um nível de genialidade desaproveitada em prol de tudo o que é errado numa sociedade, em nome da sede de poder, controlo e supremacia.

Neste livro, levamos com o murro nos queixos que são as violações como arma de guerra. É difícil de engolir. É nauseante, é insano. Como é que alguém está sentado na sua cadeira almofadada, rodeado de homens de gravata, a decidir estratégias de violação para deitar abaixo o espírito de um povo e impedir que se reproduzam?

A lavagem cerebral do povo russo desde tenra idade, o enxovalhar do Ocidente, a propagação da crença de que os ucranianos são nazis, o feminismo como terrorismo, são outros temas pesados e inacreditáveis do livro.

Outra coisa que me chocou são as fábricas de trolls. Só numa, foram encontrados milhões de cartões SIM, que servem para criar perfis falsos cujo único objetivo é espalhar ódio e desinformação nas redes sociais no mundo inteiro. Quando vemos o destilar de ódio gratuito que circula nas redes sociais, pode ser uma pessoa real, ou não. Pode ser alguém pago para acicatar os ânimos, criar ondas de revolta, fazer circular rumores e fake news. E o povo é apanhado nesta onda avassaladora que leva tudo à frente.

Enfim, vale a pena questionar porque é que as coisas são como são. E aos defensores de Putin que vou vendo aqui e ali, ou vocês estão tapados e não sabem da missa a metade, ou até sabem e são igualmente sanguinários sem empatia e só querem ver tudo a arder, mesmo dentro das vossas casas. Nesse caso, digo-vos o que vocês estão sempre a dizer: se gostam tanto, que vão para lá.

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Nunca o mundo esteve tão polarizado e o ódio nunca esteve tão normalizado. 

Muitos de nós já se confrontaram com o ódio irracional em membros de família ou amigos. Quem nunca aturou um tio racista num almoço de natal ou uma cunhada homofóbica? Respiramos fundo, mantemos a calma, esperamos que o tempo passe e cada um vai para sua casa. Sabemos que só vemos aquela pessoa num outro evento social longínquo e a coisa passa. No entanto, no tempo presente já não é bem assim. Ser mesquinho e odioso parece ser a regra. Existe uma mentalidade de manada desgovernada, não apoiada em factos ou dados sólidos, mas só porque podem. Não percebo o que ganham com isso. Os salários aumentam? Arranjam automaticamente médico de família? A renda fica mais baixa? Qual é o benefício real de se ser odioso, ou qual é o prazer individual que recebem por se ser um filho da mãe? 

O problema cresce quando se trata de pessoas com quem já convivemos há muitos anos, pelas quais temos alguma espécie de carinho. Embaladas por um clima que as favorece e que as protege, soltam a franga e toda a verborreia associada. Vai para a tua terra. És mulher e o almoço não se faz sozinho. Foste violada porque estavas a pedi-las. Foste em missão humanitária, podes ser torturada e morrer que eu fico a rir. Quando uma pessoa que nos é querida sai da caverna emocional onde estava enfiada e começa com este tipo de discurso, o que é correto fazer? Ter paciência, conversar e tentar que entenda factos? Fazê-las ver que estão a ser levadas por fake news? Explicar-lhes que as técnicas que estão a levá-las ao ódio já têm barbas? Provar-lhes que os instigadores de ódio não querem saber deles e das suas necessidades? 

E quando tudo falha? Quando essas pessoas não querem ouvir, não querem debater, só querem atacar, marginalizar, generalizar? Removemo-las das nossas vidas? Passamos uma borracha e apagamos tudo o que foram para nós a um dado momento? Como se pode gostar ou amar quem só odeia? É cansativo e inglório.

Outras questões se levantam. A pessoa sempre foi assim e agora sente-se legitimada? Ou é vulnerável, o público alvo certinho e direitinho, e foi na cantiga? É um novo tipo de problema causado pela atualidade e que gera desconforto entre amigos, famílias, namorados, colegas de trabalho, vizinhos. Não existe um manual de conduta, passos certos a dar, cada caso será um caso. É mais um motivo de ansiedade nas nossas vidas - algo que nos torna incompatíveis em termos morais e éticos com alguém que foi ou é importante. Só posso desejar que se encontrem soluções e pontes comuns e, caso contrário, que possam seguir com a vida em paz.

Ser uma pessoa normal e racional não custa assim tanto. Viver sem desejar o mal a ninguém que não nos fez mal devia ser apenas e só a norma. Para onde é que foi o bom e velho "vive e deixa viver"? Qual é o mal de tentarmos fazer do mundo um lugar harmonioso e agradável para todos?
Tantas perguntas, zero respostas.


Ilustração por Paul Craft/Adobe Stock
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Na minha última ida à biblioteca, a bibliotecária, que já me viu sair e entrar inúmeras vezes com livros debaixo do braço, disse-me: "Creio que temos gostos similares. Penso que gostas de histórias muito humanas com um toque negro." Pois claro, assenti. E recomendou-me Valérie Perrin. Peguei no Três e comecei a ler no próprio dia. 

É tudo o que ela disse, e mais. Daqueles, raros, que nos tiram o ar, e nos fazem pensar nele em momentos random do dia. Daqueles que, quando os terminamos, não terminam, devido à marca deixada, não como uma nódoa negra, que essa acaba por se dissipar, mas como uma tatuagem. Mesmo assim, provocam a dor da despedida. Senti isto numa mão cheia de livros ao longo de toda a vida, e senti-o agora. Não vou dizer sobre o que é, nem tecer comentários, porque foi tão pessoal e especial, que mais do que isto (recomendar) sinto que é estragar a experiência (a minha e a de futuros leitores).

Deixo apenas um trecho, não relacionado com o tema principal, que me fez lembrar o tempo em que saí do Alentejo para ir estudar para a capital:

"Desde que vive em Paris, tem a sensação de já não ver o céu. De comer betão. Antes era o verde, agora é o cinzento aquilo que tem na retina. Nunca ninguém lhe falara daquela violência. Discorre-se sobre conflitos mundiais, prisões, histórias de amor, faits divers, os pasmados, os velhos, prostituição, os desempregados, o fabrico de automóveis, mas nunca ele ouvira testemunhos sobre o que sente um provinciano quando desagua em Paris. Tudo parece imenso, perdemo-nos, sentimo-nos perdidos mesmo que não o estejamos, ninguém se fala, ninguém se vê, ninguém se cumprimenta. Os olhares voltados para um interior imenso, um labirinto de solidões. Como se uma tristeza comum estivesse colada às solas dos utentes do metro.
Paradoxalmente, apesar da opressão, da multidão, Adrien sente-se mais livre. Afogado nas massas. Ser anónimo tranquiliza-o. Aqui, não há mexericos, maledicências nem juízos de valor. Aqui, estão-se todos nas tintas para os outros. Quando se morre em Paris, ninguém sabe. Quando se morre em La Comelle, sai um artigo no jornal. 

in Três, de Valérie Perrin



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Estava a chegar ao escritório (no sonho não estava em teletrabalho), e disseram-me que hoje se ia trabalhar a partir da cave. Eu e outra colega que estava a chegar ao mesmo tempo nem pusemos questões e dirigimo-nos para lá.

A cave estava escura, apenas com uma luz amarelada vinda de uma lâmpada pendurada no tecto, e bafienta. Já lá estavam alguns colegas a tentar, sem sucesso, apanhar o wi-fi. Nisto começámos a ouvir sons estranhos e começámos a procurar a sua origem. Era um gatinho, mas não verdadeiro, parecia um peluche que tinha ganho vida. E nós ficámos deslumbrados, dissemos como era bonito e parecia magia. E o gato fala: "Não é magia! Sou um espírito maligno enfiado neste objeto de pano e pelúcia! Temam-me! Vou-vos matar!". E nós, "ooooohh que fofo, o gato fala", e cagámos completamente nas ameaças, continuando a tentar trabalhar. 

O espírito foi procurar outro objeto para possuir, e voltou no corpo de "Dora, a Exploradora". Mais "ooohh" e "aaahh" surgiram, uma das colegas disse: "Aiii a Dora, a minha filha ama, se estivesse aqui ia encher-te de abraços". E o espírito maligno sentiu vontade de chorar. Depois acordei. Não sei que forma terá tomado a seguir, mas imagino que tenha sido um Nenuco ou uma goma de ursinho.



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