Palavras do Abismo

Na minha última ida à biblioteca, a bibliotecária, que já me viu sair e entrar inúmeras vezes com livros debaixo do braço, disse-me: "Creio que temos gostos similares. Penso que gostas de histórias muito humanas com um toque negro." Pois claro, assenti. E recomendou-me Valérie Perrin. Peguei no Três e comecei a ler no próprio dia. 

É tudo o que ela disse, e mais. Daqueles, raros, que nos tiram o ar, e nos fazem pensar nele em momentos random do dia. Daqueles que, quando os terminamos, não terminam, devido à marca deixada, não como uma nódoa negra, que essa acaba por se dissipar, mas como uma tatuagem. Mesmo assim, provocam a dor da despedida. Senti isto numa mão cheia de livros ao longo de toda a vida, e senti-o agora. Não vou dizer sobre o que é, nem tecer comentários, porque foi tão pessoal e especial, que mais do que isto (recomendar) sinto que é estragar a experiência (a minha e a de futuros leitores).

Deixo apenas um trecho, não relacionado com o tema principal, que me fez lembrar o tempo em que saí do Alentejo para ir estudar para a capital:

"Desde que vive em Paris, tem a sensação de já não ver o céu. De comer betão. Antes era o verde, agora é o cinzento aquilo que tem na retina. Nunca ninguém lhe falara daquela violência. Discorre-se sobre conflitos mundiais, prisões, histórias de amor, faits divers, os pasmados, os velhos, prostituição, os desempregados, o fabrico de automóveis, mas nunca ele ouvira testemunhos sobre o que sente um provinciano quando desagua em Paris. Tudo parece imenso, perdemo-nos, sentimo-nos perdidos mesmo que não o estejamos, ninguém se fala, ninguém se vê, ninguém se cumprimenta. Os olhares voltados para um interior imenso, um labirinto de solidões. Como se uma tristeza comum estivesse colada às solas dos utentes do metro.
Paradoxalmente, apesar da opressão, da multidão, Adrien sente-se mais livre. Afogado nas massas. Ser anónimo tranquiliza-o. Aqui, não há mexericos, maledicências nem juízos de valor. Aqui, estão-se todos nas tintas para os outros. Quando se morre em Paris, ninguém sabe. Quando se morre em La Comelle, sai um artigo no jornal. 

in Três, de Valérie Perrin



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Estava a chegar ao escritório (no sonho não estava em teletrabalho), e disseram-me que hoje se ia trabalhar a partir da cave. Eu e outra colega que estava a chegar ao mesmo tempo nem pusemos questões e dirigimo-nos para lá.

A cave estava escura, apenas com uma luz amarelada vinda de uma lâmpada pendurada no tecto, e bafienta. Já lá estavam alguns colegas a tentar, sem sucesso, apanhar o wi-fi. Nisto começámos a ouvir sons estranhos e começámos a procurar a sua origem. Era um gatinho, mas não verdadeiro, parecia um peluche que tinha ganho vida. E nós ficámos deslumbrados, dissemos como era bonito e parecia magia. E o gato fala: "Não é magia! Sou um espírito maligno enfiado neste objeto de pano e pelúcia! Temam-me! Vou-vos matar!". E nós, "ooooohh que fofo, o gato fala", e cagámos completamente nas ameaças, continuando a tentar trabalhar. 

O espírito foi procurar outro objeto para possuir, e voltou no corpo de "Dora, a Exploradora". Mais "ooohh" e "aaahh" surgiram, uma das colegas disse: "Aiii a Dora, a minha filha ama, se estivesse aqui ia encher-te de abraços". E o espírito maligno sentiu vontade de chorar. Depois acordei. Não sei que forma terá tomado a seguir, mas imagino que tenha sido um Nenuco ou uma goma de ursinho.



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Agora que o verão está quase a terminar, termina também um problema que nos aflige a todos, pelo menos uma vez na vida. As putas das melgas. 

No entanto, o meu problema em si não são os insectos - eles estão apenas a fazer o seu trabalho, que é ser chato e chupar-nos sangue. O que me faz sentir estúpida é que estou naquele estado de pré-sono, ouço o zzzzzzz típico da bicha perto do ouvido, e a minha reação é esbofetear a minha própria cara. SEMPRE. SEMPRE. Acabo por acordar estremunhada com a violência e perder o sono. 

E porque sou o epítome da benevolência, ainda me levanto para tentar colocar a culpada dentro dum tupperware e soltá-la lá fora, porque me custa matar um bom trabalhador que faz turnos da noite.




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Será que a ausência de som absoluta existe? Ontem à noite, no silêncio sepulcral do meu leito, reparei com deleite na total ausência de sons - nem pessoas, nem animais, nem vento, nem carros, absolutamente nada. Enquanto apreciava a calmaria, reparei também que existia, sim, um som. Vindo da minha própria cabeça, dos meus ouvidos. Como se o meu corpo combatesse o silêncio produzindo ou inventando sons para meu desprazer.

É raro lembrar-me do que estou a pensar antes de dormir, mas hoje lembrei-me e fui pesquisar sobre isso. Parece que é uma cena. O fluxo sanguíneo pode fazer-se ouvir, aliado à atividade neurológica, blá blá blá, e forma uma espécie de zumbido interior. O que importa é que, foda-se, não dá para estar em completo silêncio, pois não? Deve ser isto que querem dizer no The Sound of Silence, toda uma canção dedicada ao zumbido que fica quando tudo se cala. De qualquer forma, feliz é quem chega a esse ponto de estar tanto silêncio que dá para ouvir os seus sons internos.


Imagem gerada por AI com o pedido "Sound of Silence". Apeteceu.


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Conforme os anos vão passando e nos vamos distanciando do 25 de abril de 1974, mais se observa o levantar de vozes dignificando Salazar, que "nesse tempo é que era". Não é de estranhar que a maior parte destas vozes não fosse viva nessa altura. E também é notório que devem falar pouco com os pais, ou com os avós. Nunca devem ter ouvido a realidade de uma boca próxima, de uma pessoa real que viveu a vida tal como ela era. Ou então, são de famílias privilegiadas. Para eles, relatos de pessoas presas, espancadas ou mortas por serem contra o regime, por opinarem, por terem voz na praça pública, são como ficção. Sem se darem conta do facto de que elas próprias terem abertura e liberdade para dizer as baboseiras que querem, é produto do fim da ditadura.

O que agora é feito com normalidade - dizer mal do governo, comentar a vida política nos cafés, VOTAR livremente! - não era possível. Os comentadores de Facebook que passam a vida a denegrir os líderes políticos atuais (sejam eles quais forem), já teriam recebido uma visita de uns certos senhores e nunca mais seriam vistos. A imprensa, que hoje consideram parcial, um "jornalixo", era altamente controlada pelo Estado e só eram publicadas notícias que lambessem as botas ao governo ou que fossem tão inócuas e dóceis que não fizessem mossa a ninguém.

Esses saudosistas da tanga, que decerto batem punhetas a ver gajas nuas entre posts a destilar veneno, nem se devem lembrar que as mulheres tinham de andar tapadinhas, em nome da decência e do decoro, tendo os biquinis sido proibidos e os tamanhos dos decotes eram determinados na lei.

Esses punheteiros que, muitos deles, gostam de ver o seu filme de super-heróis, não devem saber que as bandas desenhadas vindas do estrangeiro eram proibidas. Esses punheteiros, que dão uma golada na Coca-cola entre punhetas, não se devem lembrar que a bebida era proibida em Portugal, por medo da modernidade!

Decerto contribui para esta tesão pelo Estado Novo o controlo que era feito às mulheres. As enfermeiras, telefonistas e hospedeiras não se podiam casar. Se quisessem viajar, as mulheres tinham de ter autorização do marido, assim como para assinar documentos e tomar decisões sobre bens que lhes pertencessem. A sua correspondência também era controlada pelo marido. O acesso a um sem número de profissões era negada. As professoras tinham de ter, obrigatoriamente, um salário inferior ao marido, e precisavam de autorização para casar. E se levassem nos cornos, ou fossem traídas, era deixá-las andar, que o divórcio era proibido. Nas escolas, nada de misturas - meninas para um lado e meninos para o outro. Saias, só se não mostrassem joelhos. Que tesão, hein, machistas?

Hoje, inflamados por discursos populistas, enchem a boca com expressões como "os estrangeiros que nos invadem têm tudo, e os nossos sem-abrigo?" Pois, na altura, era proibido ser-se sem-abrigo. Se não houvesse um documento que comprovasse incapacidade para trabalhar, iam para a prisão. Percebem a contradição?

Coisas simples como acender um cigarro ou andar de bicicleta (para ter isqueiro e bicicleta era preciso licença), jogar às cartas no comboio, ouvir a música que querem, os filmes que querem, ver os programas que querem, ler os livros que querem, andarem de mãos dadas na rua, ou dar um beijinho, fazerem reuniões ou ajuntamentos de pessoas, sacudir o pó, dariam, na altura, com sorte, uma multa, ou com a falta dela, prisão ou mesmo a morte.

Não consigo mesmo entender os lunáticos que olham para as características da ditadura e dizem, sim senhor, é isto mesmo que eu queria. É que só podem ter um distúrbio. Não há um argumento que considere válido na defesa da ditadura. Venham os punheteiros dizer, ah mas as contas estavam equilibradas, tínhamos dinheiro! Pois, havia quem tivesse dinheiro, principalmente os amigos do regime, e havia quem fosse pobre. Se tivemos um crescimento substancial foi devido às exportações durante a guerra e à exploração das colónias. De resto, o medo da modernidade travou a industrialização e Portugal era um país bastante atrasado, preso à sua ruralidade. Ah, e construiu uma ponte. Pronto, então tudo bem, aceito levar pontapés no lombo por ler um livro proibido em troca de uma ponte. Não há mais ninguém no mundo que nos faça uma ponte. Nem havia o raio dum salário mínimo, nem sequer direito a férias! Não havia saúde pública, ensino público, sindicatos, direito à greve... Porreiro, pá!

Este ano assinalam-se 50 anos do fim da ditatura e é chocante existirem pessoas que a ela querem voltar. Quero acreditar que não sabem o que dizem. Quero acreditar que não encontram prazer na repressão e na tortura. Quem nos tirar a liberdade, tira-nos tudo. Pesquisem entrevistas de quem passou mal, falem com gerações mais velhas, estudem as atuais ditaduras. E se mesmo assim acharem que "nesse tempo é que era", e como "quem está mal muda-se", força, emigrem para um país com um regime ditatorial e divirtam-se. Sugiro a Coreia do Norte, vão adorar.

As eleições estão à porta. Não fiquem em casa. Façam uso do direito que foi conquistado a pulso. Não tomem nada por garantido. Olhem para o que está a acontecer no mundo. Não sucumbam a discursos populistas inflamados. Não fechem as portas que Abril abriu. Precisamos de responsabilidade, comprometimento e honestidade, sim, mas nunca, NUNCA, à custa de ódio e medo.

Fascismo nunca mais, 25 de abril sempre!



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 "Dorah estava bem melhor, embora continuasse a pedir-me que lhe comprasse xarope para a tosse na farmácia da 107 - segundo ela, o farmacêutico da nossa rua era um filibusteiro, que desconfiava dela e se recusava a aviar-lhe as receitas"

in "O nome que a cidade esqueceu", de João Tordo (2023)


filibusteiro
O mesmo que flibusteiro.

nome masculino
1. Pirata dos mares americanos, nos séculos XVII e XVIII.

adjectivo e nome masculino
2. Que ou quem é aventureiro ou temerário.
3. Que ou quem é ladrão ou trapaceiro.

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024


Filibusteiro, portanto, está associado a piratas. Logo, não é de estranhar que tenha duas conotações, que até estão ligadas. Os piratas roubavam e pilhavam, sim, mas é (ou era) preciso uma grande dose de coragem para passar anos, ou mesmo a vida, no mar, enfrentando tanto as agruras dos oceanos, as tempestades e tudo o mais; como para enfrentar inimigos, doenças e maleitas, arriscando a vida.

Pode ser tentador adjetivar alguém de filibusteiro, hoje em dia, mas, salvo exceções, considero que estamos a passar por uma escassez de filibusteiros. Quem mais nos rouba, fá-lo a partir de um certo conforto, de uma certa posição na sociedade, protegido por uma certa rede de segurança. As armas mais usadas são as falinhas mansas, informações falsas, falsas promessas, dizer o que o outro quer ouvir. Passámos das espadas e dos canhões, das lutas corpo a corpo, da coragem de morrer por um modo de vida, para a falsa sensação de segurança provocada por fato e gravata, promessas de enriquecimento rápido ou fontes de juventude eterna. Já não se fazem filibusteiros como antigamente, isso é certo.



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Sou uma morning person. Todos os dias me levanto às 06h15 para treinar ou correr antes de começar o dia de trabalho. Às vezes custa, mas na maior parte dos dias faço-o com prazer e energia. Já o faço há tantos anos, que aos fins de semana acontece o mesmo involuntariamente: acordo muito cedo e acabo por despachar as tarefas domésticas cedíssimo, que realizo a ouvir música e a dançar como se ninguém estivesse a ver. Ora, isto significa que às 22h30 estou deitada com uma moca de sono descomunal. Ok, posso dizer que quanto mais velha pior, mas o facto é que eu sempre fui assim - durante a manhã sinto-me a Supermulher, ao fim do dia tenho 90 anos e uma mantinha nos joelhos.

Há uns tempos a Jamie Lee Curtis disse que recusava convites de tudo o que achasse tarde. Até recusou ir ao jantar dos últimos Óscares porque já apanhava a sua hora de deitar. E também disse que devia haver matinés para tudo, especialmente concertos. Achei completamente relatable.

A não ser que vamos a um festival, onde há concertos que começam durante a tarde (aqueles que quase ninguém paga para ir ver), não existem praticamente espetáculos durante o dia. Não estou a falar de eventos locais esporádicos que possam existir, e existem, e eu vou aqui aos da minha zona. Estou a falar, por exemplo, de ver Metallica na Altice Arena às 15h00. Ou às 17h. Ou mesmo às 19h. Impossível, não é? Mas porquê? A essa hora há transportes à farta, a energia está em altas, e é um espaço fechado, que interessa se é dia ou noite lá fora?

"Ah, mas a essa hora, mesmo ao fim de semana, há pessoas a trabalhar". Pois, também há pessoas que trabalham à noite. E mais, se eu quiser ir a um festival em Portugal, tenho de meter férias porque são tipicamente à quinta, sexta e sábado. Portanto, o que é mais conveniente para uns não o é para outros, o que invalida esse argumento. Quantos a outros argumentos, não os encontro e não consigo vislumbram quais poderiam ser.

É também uma questão cultural. Já fui a um concerto em Paris onde a banda principal atuou às 18h30 no Moulin Rouge. Já estive num festival em Inglaterra em que Metallica fechou o dia às 20h30 e às 22h30 estavam a expulsar as pessoas do recinto. No mesmo festival, às 11h00 da manhã seguinte estava a ver Volbeat. Por cá, parece-me que é tudo tardíssimo, e ainda por cima muitos começam com atraso. Até a Lorde, no último Paredes de Coura, perguntou em palco como é que os portugueses se aguentavam com estes horários de concertos.

Enfim, tudo isto para dizer que deviam haver mais eventos para morning people. Tenho a certeza que eu e a Jamie Lee Curtis não estamos sozinhas. Quero curtir as cenas com energia, com transportes disponíveis, com tempo à farta para chegar a casa. Quero sair de um concerto e ter restaurantes abertos, luz do sol, ou um pôr-do-sol, em vez de bocejos, olhos semicerrados da miopia exacerbada pelo período noturno e um desejo tremendo de estar debaixo dos lençóis. E sair de casa já de noite? Depois de estarmos no sofá? Com mantas? Como é que se faz isso de ânimo leve?

Everything is New, Prime Artists, Música no Coração, afins, ponham os olhos neste post. Está aqui o embrião duma ideia milionária.




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Ontem foi dia de ir ao escritório a Lisboa, e no autocarro de regresso uma mulher aproxima-se e pergunta: "posso sentar-me ao teu lado? O meu bilhete é lá prá frente, mas odeio ir à frente". Eu acedi. Ela senta-se, e inicia uma chamada em alta voz:

"- Estou? É da Wecare?
- Sim, boa tarde, é da Wecare Parque das Nações.
- O doutor X ainda está aí?
- Não, de momento já não se encontra.
- Ele foi mêmo fixe pra mim. É só pra dizer que já tou no autocarro.
- Desculpe?
- É pra avisar o doutor que cheguei a tempo de apanhar o autocarro das 5. [silêncio] É que o doutor despachou-me rápido pra eu vir a correr, e queria dizer-lhe que apanhei o autocarro.
- Ah, ok... Esteja descansada. Com licença...
- SOU A SANDRA! SANDRA!*
- pi pi pi [som de telefone desligado]"

*Nome fictício

Tenho quase a certeza que o doutor não foi avisado que a Sandra apanhou o autocarro... 

Ouvi esta conversa e pensei, "que personagem". Momentos depois, perguntou-me se aquele autocarro costumava estar sempre tão cheio. "É que eu não sou daqui", disse. "E raramente cá venho". Pronto, vi logo que não ia ter uma viagem silenciosa e que se calhar teria de educadamente dar a entender que ia ler o meu livro e encerrar para conversas. Lá respondi, sim, tem ido sempre cheio, e eu também não sou daqui. "Ai não, és de onde?" Respondi e, pasme-se, somos da mesma terra. No entanto, nunca nos tínhamos visto. Talvez ela seja uns aninhos mais velha, ou então está apenas maltratada da vida. Olhando-a, com o seu ar cansado, muito magra, as roupas coçadas, e pelos modos e maneira de falar, percebi que não tinha tido uma vida fácil. 

Resumindo e concluindo, acabámos por falar a viagem inteira. Palavra puxa palavra, ela fazia-me perguntas, genuinamente interessada na minha vida, e eu retribuía também com vivo interesse. Por questão de organização, vou listar as coisas que quis partilhar comigo:

  • Foi mãe aos 21 anos, de um homem que não quis saber dela, e desde então tem sido mãe solteira
  • Esse homem, pai do filho, morreu o ano passado de cancro de pele
  • O pai morreu de cancro na garganta quando ela era mais nova, e guarda uma grande mágoa por não a terem deixado vê-lo nos últimos momentos
  • Orgulha-se de ter conseguido tirar o 12º ano há pouco tempo. Disse que alguns professores foram arrogantes e tentaram dificultar-lhe a vida, mas encontrou outros que realmente se interessaram em ajudá-la a ultrapassar as dificuldades de aprendizagem
  • Um dos seus grandes sonhos é tirar a carta de condução. Um membro qualquer da família fez-lhe a cabeça em como não ia conseguir tirar e não era para ela, então nunca tentou
  • É cuidadora informal da mãe a tempo inteiro, que está acamada com uma doença grave
  • Conseguiu deixar de fumar
  • Tem um cão e alguns gatos. Odeia touradas, maus tratos a animais e até já quase não come carne
Foi sem pingo de auto-comiseração que falou de si. E devido ao seu interesse e perguntas, também falámos de mim. Perguntou-me se tinha licenciatura, em que trabalhava. É um bocado difícil explicar o que é um gestor de conteúdos web e developer a quem essas coisas não dizem nada, mas tentei e disse-lhe o nome conhecido da empresa onde trabalho. "Ah, és uma espécie de técnica". Não era, mas assenti, claro. "Tens um curso e um bom trabalho, mas sei lá, a olhar para ti, pensei que eras uma pessoa simples!" Ri-me, pela perceção eterna de que o nosso aspeto é um cartão de visita, e que gosto dele: uma pessoa simples. E sou mesmo. Ela diz: "fogo, tens cá uma cabeça, imagino o stress que passas e a pressão que tens em cima. E depois de estudar fora longe dos amigos e família, de quarto alugado em quarto alugado. Não é fácil mesmo. Tu és forte". Eu fiquei estarrecida e senti-me como se tivesse levado com um balde de humildade na fronha. Não, Sandra. Marrar e tirar um curso com o apoio dos pais, aturar chefes maus e enfrentar a pressão duma grande empresa não é nada difícil, em comparação. Difícil é a tua vida e cuidar dos outros como cuidas, a suportar três pessoas e animais com um apoio monetário da treta, a limpar feridas e o rabo da tua mãe, e carregá-la com esses teus 40 quilos até à cadeira para ela poder ver o mundo lá fora à janela. Sabes o que são dificuldades a sério, sabes o que é a morte, sabes o que são sonhos a ficar para trás. Sandra, eu não era capaz de fazer o que fazes, tu é que conheces a pressão e tens a força. Ficou com os olhos humedecidos. Provavelmente, raramente lhe reconhecem o mérito.

Houve alguns momentos em que a "personagem" renasceu. Durante o seu discurso, disse várias vezes: "o meu maior atributo é o auto-domínio!" Isto do nada, mesmo quando o assunto não tinha nada que ver. Outra coisa que ia repetindo: "o problema lá da terra são as invejosas! Eu já não falo com quase ninguém lá!". A dado momento, disse que tinha de ouvir uma música, e abriu o Youtube alto e bom som, com uma música de Post Malone. "Raramente tenho tempo para ouvir música". E até cantou. Dei-lhe a dica: se quiseres, empresto-te uns phones. Recusou, e não pôs mais nenhuma.
Disse que tinha de arranjar maneiras de espairecer, nem que fosse um bocadinho. Disse-lhe que correr e fazer ioga resultava comigo, e ela respondeu que correr não, que lhe doíam os joelhos, que gostava de se iniciar no ioga mas não sabia como. Dei-lhe umas dicas, pareceu satisfeita e com vontade de começar. Relativamente às invejosas que ia mencionando com frequência, tentei fazê-la ver que ela já tem muita sarna para se coçar e não precisa de se preocupar com o que os outros pensam, dizem e fazem. Que sei que é difícil fugir a esse tipo de falatório numa terra pequena, mas que ia sentir libertação no cagar e andar. Fiquei com a sensação de que a conversa das invejosas estaria relacionada com ela não colocar a mãe num asilo para esta continuar a receber a reforma (que deve ser enorme...). Disse-me que meter a mãe num asilo significaria morrer numa cama sozinha sem amor, e ela não ia deixar isso acontecer, principalmente depois de não a deixarem despedir do pai moribundo.

Já quase no fim da viagem, o filho ligou-lhe, e mais uma vez em alta voz, ouvi:

"- Onde é que tás?
- Não estou por perto.
- Não há mortalhas.
- Filho, não estou por perto.
- Epá, demoras muito?
- Não sei bem...
- DESPACHA-TE E TRAZ-ME MORTALHAS CARALHO!"

Não admira que esteja sempre a repetir que tem muito auto-domínio. Tem mesmo. Se alguém me falasse assim já lhe tinha partido uma cadeira na boca. Disse-me que não tinha dito a ninguém que tinha ido a uma consulta a Lisboa, porque sempre que faz alguma coisa por ela própria, todos levantam problemas. Vida do cacete.

Saí uma paragem antes dela. Antes de sair, ela disse-me: "Obrigada. Estou tão cansada, mas mesmo assim falar este tempo todo soube-me bem. Não nos conhecemos, mas parecia que sim. Sinto-me mais leve." Ela e eu.

Estou sempre a dizer que não gosto de pessoas e não gosto de falar. É totalmente verdade, principalmente no contexto profissional onde estou inserida. Estou há 15 anos numa grande empresa e sempre me senti um peixe fora de água, e cada vez mais com o passar dos anos. É 'apenas' vida profissional, mas é a trabalhar que passo a maior parte dos dias, e onde conheço e tenho de falar com mais pessoas. Aos meus colegas não lhes reconheço qualquer interesse. Há exceções, sim, e são talvez três os colegas com quem consigo manter uma conversa. De resto, são pessoas de outro nível social e com interesses que para mim são fúteis e não merecem atenção. Como tal, fui ganhando fama de ser uma pessoa calada, acutilante, fechada.
Não tenho pachorra para conversas sobre maquilhagem, extensões, eletrodomésticos da Smeg, receitas da Bimby, unhas, roupas de marca, festas, jantares em sítios in, viagens caríssimas, casamentos, filhos, as amas dos filhos, o colégio dos filhos, o ténis e o futebol dos filhos, botox, cirurgias estéticas. Assim, não tendo nada a dizer e zero interesse em saber mais sobre esses temas, calo-me e ponho os phones.
Portanto, a Sanda desarmou-me completamente, e quem me visse julgaria até que sou uma pessoa normal, faladora e social.
Ainda ontem, quando ia sair do escritório, uma colega chata que anda sempre aos caídos em conversas na copa, lançou-me: "Tu entras muda e sais calada!" e eu atirei de volta: "Devias fazer o mesmo!", após o que ela se riu com aquele riso de quem não tem vontade nenhuma. Então, devolvi o cumprimento à Sandra: disse-lhe que assim a viagem passou rápido, também me diminuiu o cansaço, e que eu não costumo ser assim, faladora. "Já falei mais contigo hoje do que em muitos anos com as pessoas com quem trabalho". Acho que ela se sentiu bem.

Comecei por colocar a Sandra na categoria de pessoas estranhas, principalmente pela chamada de voz inicial, mas pelo tamanho do texto e por tanto que eu tenho a dizer sobre ela (e o post não lhe faz juz) acho que se vê que ela é tudo menos estranha. Apenas alguém que mal ou bem se tem safado num mundo filha da puta, com poucos recursos e muitas contrariedades. E ao mesmo tempo descubro também algo sobre mim: não odeio toda a gente. Acontece que conheço muita gente oca e desinteressante. E que, se trabalho há tanto tempo numa grande empresa que nem me paga o suficiente para eu largar o autocarro que me obriga a acordar às 04h, e se nem gosto das pessoas, nem do trabalho, se calhar é altura de ser mais Sandra, aprender a viver com menos e dar atenção ao que importa.



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"Leónidas era o maior. Só que agora, no momento em que a fama o chamava para ser um dos seus, tudo lhe parecia fútil. Era um palco conquistado com demasiada aflição para sentir o cheiro dos louros da vitória e a algazarra de pasquins e serventuários sem outro intuito que não fosse a cobiça e a ambição."

in Não Há Lugar Para Divorciadas, de Francisco Moita Flores (2003)

serventuário

nome masculino
1. Aquele que serve em emprego ou ofício em vez daquele a quem o trabalho incumbe.
2. Pessoa que serve ou presta serviços auxiliares. = SERVENTE
3. Pessoa que desempenha funções burocráticas, geralmente na administração pública (ex.: serventuários municipais).

adjectivo e nome masculino
4. [Depreciativo] Que ou quem é servil ou muito condescendente ou obediente em relação às acções ou ideias de outrem (ex.: atitude serventuária; acusou-o de ser um mero serventuário do regime).

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Com que então, serventuário. Nunca tinha "ouvisto", mas percebe-se que vem de servir. Logo, não me surpreende o significado encontrado. No entanto, há o lado mais escarninho da coisa, e já se sabe que tenho uma fixação maior pelo menosprezo. Agradam-me sempre palavras que possa chamar a certas pessoas sem que elas percebam, pelo menos no imediato sem recorrerem à internet, se as estou a elogiar ou a passar a perna.

Lembro-me justamente de um colega. Tudo o que o chefe diz, ele diz "amén". Seja boa ideia, seja cagalhão. Seja útil, seja café com mijo. Atenção, ele é que é esperto. Ele é que ganha bem, tem boas avaliações, passa por óptimo profissional e tem curso superior de engraxamento. Não chega para deixar de o achar insuportável. Adiante. Esta palavra assenta-lhe que nem uma luva e como tal dedico-lhe o adjetivo, com esperança que não fique corcovado e com dores de pescoço de tanto receber festinhas no tatuço. 



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A imagem em baixo representa o momento em que Tokitae se deixou libertar para a morte. Era uma orca que passou 53 anos (!) em cativeiro a fazer piruetas e acrobacias para humanos dentro de uma banheira. Sinto uma mágoa profunda, um sentimento de vergonha e impotência perante isto. Só me apetece pedir desculpa, Toki, pelo humano, que paga para mamar pipocas e ver um ser lindo, único, preso toda uma vida, para gáudio próprio, sem pensar um segundo sequer que sentias dor, medo, tristeza. Que eras uma prisioneira, sem teres cometido qualquer crime, sem teres feito nada de mal. Desculpa, desculpa, desculpa.

Sob a máscara da desculpa da "preservação das espécies" Toki foi capturada. Não caiam nessa, fazer malabarismos com arcos e bolas é apenas e só encher os bolsos de alguém à custa de sofrimento. Mas quem pensamos nós que somos? Para retirar à natureza o que tem de mais belo e torturá-lo durante décadas? Como é que as pessoas não veem a crueldade nisto? Será que se estão simplesmente a cagar? Como é que continuamos a alimentar isto, também em Portugal?

Não compactuem com isto. Os golfinhos do Zoomarine e do Jardim Zoológico não escolheram viver num tanque e servir de palhaços para animar a malta. Os touros nas arenas não escolhem morrer espetados por ferros sangrando até à morte. As araras dos parques aquáticos não escolheram passar o dia inteiro debaixo do sol tórrido a tirar fotografias nos vossos ombros. Os elefantes e os camelos não escolheram passar o dia a arcar com turistas no lombo. Os cavalos usados nas touradas não pediram para levar cornadas no lombo, para ter a boca em sangue de tanto ser puxada, acabando muitas vezes por ter de ser abatidos. Tudo isto é ERRADO! Não paguem bilhetes para estas merdas!

Vivam e deixem a natureza em paz. Apreciem-na, tirem dela partido sem abusar. Querem brincar, brinquem com as vossas pilinhas. Querem ver orcas? Vejam nos documentários ou arrisquem-se num veleiro junto à costa, elas andem aí, onde pertencem. Temos a mania da grandeza e de que tudo podemos, mas um dia este planeta vai mostrar-nos que não somos nada. Já começou.

É de lágrimas nos olhos que me despeço de mais um ser vivo, belo, imenso, que morreu para entretenimento humano. Vive agora a liberdade que nunca tiveste, Toki. Lamento, do fundo do coração.



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