Palavras do Abismo

 "Então, avistaram o Cometa, deslocado, brilhando com um reflexo pálido; a cabeça, a cauda e o dorso davam gritos dementes; os membros dispersos caíam na escuridão das ondas, estilhaçando-se como lâminas de metal.
_Tudo isto transformar-se-á numa holotúria - disse suavemente o Turbilhão".

in O Escritório dos Gatos, de Kenji Miyazama (1997)

O que raio é uma holotúria?

"Animal equinodermo marinho, de corpo alongado, com tegumento mole, granulações ou concreções calcárias, boca, numa das extremidades oposta ao ânus, cercada de tentáculos, utilizado desidratado na cozinha oriental. = PEPINO-DO-MAR"
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Ah, ok. Afinal é só um pepino-do-mar. Porque não dizem logo pepino-do-mar? Mas nããão, armadas em vedetas intelectuais obrigam uma pessoa a ir ver o que é, apenas para se desiludir. De qualquer forma, alguém tinha de o fazer e cá estou eu a informar que uma holotúria é um pepino-do-mar. Gostaria que o post #100 sobre coisas que se aprendem fosse mais interessante, só que não. 
Mas vamos ao que importa. Quem é que quer comer uma coisa cuja descrição tem "anus"? (para efeitos alimentares, cof cof) E não só! "Tegumento mole, granulações ou concreções calcárias" ? Ai, que apetitoso, quero tanto.
Ao procurar imagens, pensei que a descrição mais adequada seria "pénis cortado, deitado ao mar, apodrecido e inchado". De nada.






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O sonho foi só isto: abri o compartimento do detergente da máquina de lavar roupa após lavagem, e o detergente e amaciador continuavam lá, mas com um aspeto enegrecido, podre e malcheiroso. E pronto, acabou, ou não me lembro do resto.

Fico lixada - são estes os sonhos da meia-idade? Nada de sonhos molhados, universos paralelos e situações cómicas, cósmicas e absurdas? Agora sonha-se com detergente para a roupa e vida doméstica? Pronto, agora o "eu" de mantinha e saco de água quente também existe no outro lado do espelho. Finito.

Como tem vindo a ser habitual, o nosso novo amigo Chat GPT dá uma ajuda e diz que sonhar com detergente não utilizado pode simbolizar esforço que não está a ser reconhecido, e por estar escuro pode querer dizer que estou cansada de cuidar de tudo. Com razão! Uma pessoa a trabalhar há tantos anos e ainda não é rica, tem de lavar a própria roupa, limpar a própria casa, fazer a própria comida! Francamente.



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Há um homem que treina no ginásio onde ando que é extremamente simpático. Cada pessoa que vê entrar faz questão de cumprimentar, com uma voz profunda e gutural. Solta um BOA TARDE que parece saído da garganta do vocalista de Machine Head, mas mesmo assim algumas pessoas, que devem ter phones de boa qualidade, não ouvem, ou fingem não ouvir. Mas isso não demove o seu espírito gentil e continua, dia após dia, fazendo questão de facilicar o dia a todos. 

Hoje fui para uma máquina no ginásio que tinha um banco à frente e eu precisava de espaço. Ele surge do nada perguntando se queria que ele tirasse o banco, e eu "já agora..." e aproveitei a oferta - menos trabalho para mim. Ele estava de saída, e passou pela rapariga ao meu lado, uma moça mais novinha, gordinha, e claramente ainda a dar os primeiros passos num ginásio, e disse-lhe: BOA! ESTÁS A IR BEM! BOM TREINO, ATÉ AMANHÃ! (escrevo em maiúsculas pois a voz dele é mesmo alta e gutural), ao que ela respondeu um tímido "Obrigada!". Bem... tive um vislumbre da cara da rapariga, com um sorriso tão orgulhoso e feliz, e pensei, porra, ser simpático pode mudar mesmo o dia de alguém. Ainda o ouvi soltar um EPÁ PRAZER EM VER-TE POR AQUI OUTRA VEZ já quase na rua, fazendo mais uma vítima da sua simpatia.

Às vezes ele treina com uma mulher, que deve ser a namorada/esposa, e quando ele faz estas observações às pessoas e se embrenha em conversas, elogios, e insistência em falar com toda a gente, ela baixa a cabeça e abana-a ligeiramente, mostrando que, ya, fod@-se, deve ser cansativo para caraças partilhar a vida com alguém tão dado e solícito. Cada ida ao ginásio, ao supermercado, ou andar na rua com ele deve ser muito complexo e muito, muito, moroso. De qualquer forma, nós, os outros, que só o apanhamos uma horita por dia, celebramos a sua existência.

Há umas semanas, no Pingo Doce, também apanhei a operadora de caixa mais simpática e alegre de todo o sempre. Com uma entoação felicíssima, a fazer perguntas e a entusiasmar-se com as respostas, a rir-se de si mesma, com um sorriso sempre aberto e uma atitude tão positiva, que saí de lá a pensar se no Pingo Doce se ganharia assim tão bem. Eu, que tenho sempre arroz de trombas e trabalho no conforto do meu lar, não tenho um pintelho da simpatia e disponibilidade daquela rapariga que atura pessoas todos os dias em horários difíceis por um valor provavelmente mais baixo. O que é certo é que não saí de lá com a mesma disposição com que entrei, e aqui estou eu a pensar nela, semanas depois. 

Já no Continente, se estiver lá a trabalhar uma certa rapariga, que já sei que é a mais simpática e prestável, escolho a sua caixa. Enfrenta, com um sorriso inabalável, idosos que pagam com todo o conteúdo de moedas pretas da carteira; quando vai fechar a caixa, se vir que estão a chegar idosos ou pessoas com crianças, volta atrás; sussurra a perguntar se não tenho um tal cupão de 10% de desconto em pão fresco, porque estou a comprar e não estou a amealhar os 10 cêntimos que me são devidos. Vejo-a, esforçada, tentanto facilitar a vida das pessoas e ajudar os colegas com um motor inesgotável, e sinto-me mais leve por existirem pessoas assim.

Servem estes louvores para dizer que se há frase feita que faça sentido, é a de que se pode mudar o dia de alguém, sendo apenas simpático, empático, deixando atrás de si migalhas que decerto outros apanharão e distribuirão também. Este será o post mais simpático que verão de mim, esta alma rezingona, mas que também se alimenta dos gestos que nos fazem gente.



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Estava curiosa para ver o Frankenstein pela mão de Guillermo del Toro, e no geral não me desiludi. A sua estética característica está lá, a produção é excelente, assim como as interpretações dos atores, e até mesmo a adaptação do livro de Mary Shelley é bem feita - talvez a melhor das adaptações Frankenstein. 

No entanto, tenho uma crítica a fazer (e que ninguém perguntou): o monstro é bonito.

É suposto o monstro criado por Victor Frankenstein ser grotesco, provocar repulsa ao olhar, medo, pânico. No fundo, ele é feito de cadáveres e órgãos alheios; quer-se que seja fisicamente anti-natura, feio, uma anormalidade. Este "monstro", no entanto, pareceu-me saído de um Fantasma da Ópera ou de um filme da Disney, o que mudou o meu sentimento ao ver o filme - deixou de me parecer um monstro para parecer um adulto infantilizado. 

A humanização do monstro é algo chave para a narrativa, sim, mas em termos psicológicos e não físicos. Caso contrário, quase nos esquecemos da origem nefasta da sua existência. Ao tornar o monstro bonito, a empatia surge mais rapidamente do que era suposto e a ideia de Mary Shelley (quem é o monstro - a criatura ou o criador?) perde alguma força. Sentimos mais pena do que medo, menos desconforto, menos impacto emocional. Simplesmente, se a criatura é bonita, não será uma falha assim tão grande no conflito ético / científico que domina o início da sua criação.

Se calhar estou a pensar demais, mas que dizer, olhem bem para estes beiços carnudos e cabelo à D'Artagnan.




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Sou a maior fã da cor preta, mas acho que é uma parvoíce pintarem rosas de preto. Para além de se estar a modificar algo que a natureza nos dá só para encaixar numa decoração de uma festa, a maioria das tintas usadas são tóxicas, deixam a rosa mais quebradiça, murcha mais facilmente e deixam manchas.

MAS eis que descobri que existe uma zona da Turquia onde as rosas nascem pretas. Só acontece na aldeia de Halfeti e em mais nenhum lugar do mundo. Na verdade, a tonalidade é preta quando florescem e conforme vão crescendo ficam de um vermelho profundo muito, muito escuro, que à vista desarmada parece preto. Isto tem a ver com as características do solo, o seu pH, minerais, etc, que ali proporcionam condições únicas para que isso aconteça.

O mais engraçado é que descobri isto num episódio do Catfish, na MTV, devido a uma miúda que se encantou por um miúdo da Turquia. Ainda dizem que não se aprende nada em dating shows.

Mas vá, agora não vão todas malucas a correr para Halfeti para ver as rosas, deixem-nas estar - se o sítio se encher de turistas, provavelmente as condições ideais que agora permitem este "milagre" vão deixar de existir.



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"Bunny inspira o cigarro e sopra uma sizígia de anéis de fumo - um, dois, três -, depois alarga o último com o indicador e diz, como que num sonho:
- A Georgia dos olhos violeta."

in A Morte de Bunny Munro, de Nick Cave (2009)

O que é sizígia?

sizígia
nome feminino
1. [Astronomia] Conjunção ou oposição de três ou mais corpos celestes (ex.: os eclipses solares e lunares ocorrem durante sizígias; sizígia entre uma estrela e dois corpos celestes).
2. [Astronomia] Conjunção da Terra, da Lua e do Sol, na lua nova e na lua cheia, quando as marés altas são maiores e as marés baixas são menores, que provoca as chamadas marés de águas vivas (ex.: maré de sizígia).
3. [Psicologia] Par de duas coisas ou de dois conceitos em oposição.

in Dicionário Priberam

Portanto, podemos dizer que sizígia é utilizado para descrever o alinhamento de três corpos celestes num sistema gravitacional. Apesar de ser formalmente utilizado em astronomia, pode ser utilizado de forma metafórica, como fez o bom do Nick. Neste caso, os três anéis de fumo do cigarro gravitam, efémeros, como planetas em órbita do seu criador. Se quisermos um exemplo da vida corriqueira: imaginemos uma mulheraça que tem dois fãs que não a largam. Formam uma sizígia - bem chata - gravitando em torno da criatura.

Nestes casos, não seja sizígico.





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Mas que epidemia é esta que se apoderou do comentário televisivo? Volta e meia, que é quase todos os dias, ouço a pérola "parece-me a mim" em programas de televisão, especialmente no comentário desportivo (mas não só).

Quão estranhas são estas pessoas para se referirem a si próprias duas vezes na mesma frase? "Parece-me" já contém o sujeito - o "-me" indica que se estão a referir a vocês próprios. "Parece-me a mim" é portanto um erro e uma redundância. Nós estamos a ouvir-vos falar, vemos a vossa boca a mexer, sabemos de antemão que estão a transmitir a vossa opinião, e o "parece-me" é mais do que suficiente.

"Parece-me a mim" que falta brio na comunicação e no uso da língua, ou talvez haja apenas uma necessidade narcísica de reforçar a própria existência.



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No Japão, as fotografias que constam nas embalagens de produtos alimentares têm de os reproduzir tal qual eles são. Isto inclui o tamanho real do produto - por exemplo, se for um pacote de bolachas em que elas têm 5cm, na fotografia da embalagem têm de ter 5cm. Não existem aquelas mensagens que estamos habituados a ver, como "imagem ilustrativa" ou "sugestão de apresentação". 

Isto faz parte da lei "Act against Unjustifiable Premiums and Misleading Representations", criada em 1962, e que tem como objetivo proteger o consumidor de rótulos e publicidade enganosos. Não acho mal - what you see is what you get.

Dei aqui uma volta aos armários e não encontrei uma única embalagem que reproduzisse fielmente o conteúdo. Tenho um pacote de bolachas de limão e chia, em que aparece um limão em ponto pequeno. PROIBIDO. Tenho umas bolachas de canela em que a fotografia das mesmas na embalagem equivale mais ou menos a metade do tamanho real. PROIBIDO. Tenho uma embalagem de pistachios em que eles estão bem maiores do que são na realidade. PROIBIDO. Tenho um ice tea em que aparece uma manga cortada num tamanho irreal. PROIBIDO. Tenho uma embalagem de tostinhas que mostra uma gigante com uma fatia de presunto em cima. PROIBIDO. Tenho um Kit Kat de avelã que mostra uma barrinha cortada ao meio com praí o triplo do tamanho (sacanas). PROIBIDO.

Se tivéssemos uma lei como esta, as marcas gastariam milhões a refazer embalagens. Mas ao menos acabava-se esta bandalheira de nos venderem sonhos em formato familiar.




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Entrei numa casa de banho pública. Tinha um livro azul equilibrado em cima da cabeça. Olhei para o espelho, reparei nele, e pousei-o na bancada. Vi que todas as cabines estavam ocupadas, mas havia uma sanita sem cabine disponível. Estava ali, em espaço aberto, bastante visível, mas não hesitei - puxei as calças para baixo e sentei-me a urinar.

Nisto, um amigo aparece e disponibiliza-se para ficar à minha frente, para tapar possíveis olhares. Mas fica de frente para mim, conversando animadamente. À medida que as pessoas vão saindo das cabines, também se vêm colocar à minha volta para tapar eventuais olhares, sem no entanto evitarem elas próprias olhar. Nada daquilo me incomoda.

Acabo o que estou a fazer, vou de novo para a frente do espelho (entretanto toda a gente desapareceu) e volto a equilibrar o livro em cima da cabeça. Saio, sem lavar as mãos. Um dia normal no mundo dos sonhos.

Contei o sonho ao meu amigo, e ele pediu uma interpretação à AI. Resumidamente, considerou o meu amigo como um porto seguro com quem posso ser vulnerável (e é). A não lavagem das mãos foi interpretado como tendo aceitado a vulnerabilidade e seguido em frente (para mim é só badalhoquice). Quanto ao livro na cabeça, é visto como uma tentativa de manter uma boa postura perante os outros (para mim foi um lembrete que tenho de ir devolver os livros à biblioteca). 

Entretanto, já fui devolver os livros. Ainda não lavei as mãos.


Parca tentativa de recriar o momento com Gemini

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Habitualmente refugio-me na ficção literária para escapar à realidade, que é bem mais dura e inacreditável. Decidi munir-me de um estômago forte e ler este livro. Acreditem, foi necessário.

Pelas coisas que vamos vendo nas notícias, a maioria de nós tem a noção de que Putin é desumano. No entanto, é muito mais do que isso. É todo um nível de genialidade desaproveitada em prol de tudo o que é errado numa sociedade, em nome da sede de poder, controlo e supremacia.

Neste livro, levamos com o murro nos queixos que são as violações como arma de guerra. É difícil de engolir. É nauseante, é insano. Como é que alguém está sentado na sua cadeira almofadada, rodeado de homens de gravata, a decidir estratégias de violação para deitar abaixo o espírito de um povo e impedir que se reproduzam?

A lavagem cerebral do povo russo desde tenra idade, o enxovalhar do Ocidente, a propagação da crença de que os ucranianos são nazis, o feminismo como terrorismo, são outros temas pesados e inacreditáveis do livro.

Outra coisa que me chocou são as fábricas de trolls. Só numa, foram encontrados milhões de cartões SIM, que servem para criar perfis falsos cujo único objetivo é espalhar ódio e desinformação nas redes sociais no mundo inteiro. Quando vemos o destilar de ódio gratuito que circula nas redes sociais, pode ser uma pessoa real, ou não. Pode ser alguém pago para acicatar os ânimos, criar ondas de revolta, fazer circular rumores e fake news. E o povo é apanhado nesta onda avassaladora que leva tudo à frente.

Enfim, vale a pena questionar porque é que as coisas são como são. E aos defensores de Putin que vou vendo aqui e ali, ou vocês estão tapados e não sabem da missa a metade, ou até sabem e são igualmente sanguinários sem empatia e só querem ver tudo a arder, mesmo dentro das vossas casas. Nesse caso, digo-vos o que vocês estão sempre a dizer: se gostam tanto, que vão para lá.

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