Às vezes as pessoas esquecem-se de onde vêm. Esquecem-se de quem as ajudou e sempre esteve ao lado delas, especialmente quando mais ninguém estava. Esquecem-se de quem gosta delas incondicionalmente, gordas ou magras, pobres ou ricas, doentes ou de saúde. Esquecem-se de que nós existimos, temos sentimentos, e necessitamos tanto como elas que o mundo gire nem que seja um pouquinho à nossa volta. Esquecem-se que temos necessidades, tal como elas, que precisamos de atenção, tal como elas, que somos humanos, tal como elas. As pessoas esquecem-se de muitas coisas, e muitas delas importantes. A mais grave é esquecerem-se de que as palavras e os gestos magoam. Que virarem-nos as costas enquanto as vemos afastarem-se é dor, e dói ainda mais quando nós nunca virámos as costas e as deixámos sozinhas. Esquecem-se que não é só dentro delas que dói, aqui também dói, e estão-se simplesmente a borrifar para isso. Agora não tenho outro remédio que não seja tentar ser como elas, e esquecer, porque não há nada mais solitário do que lembrar-me, sozinha.
Tenho pena deste paÃs e de todos nós. Ainda há poucos anos atrás me restavam alguns sonhos. Guardava para mim coisas que queria fazer num futuro próximo, e até realizava algumas. Era possÃvel fazer planos e acreditava que iria ser sempre assim. Sem pensar muito alto, mas voando de vez em quando, dando a ideia de que era livre, de que podia, que tudo era realizável. Agora, até tenho medo de ligar a televisão, o rádio ou ler os jornais. Cada dia é um passo atrás naquilo que conquistámos e naquilo que trabalhámos. Ninguém está satisfeito, todos têm razões de queixa, e esse passou a ser o tema de conversa. Não as viagens que queremos fazer, os concertos que queremos ir, os livros que queremos ler, mas sim em como vamos sobreviver. Em cada canto, as conversas variam em como se tem de mandar os filhos para a escola com roupa emprestada e sandes de manteiga em vez do almoço, em como já não se consegue poupar e contam-se os tostões até ao final do mês, em como as reformas dos nossos pais já não chegam para comer, ou em como já não se vai jantar fora ou beber um copo há meses porque simplesmente não se pode. Estamos na penúria, preocupados com as coisas erradas. Eu estou preocupada, porque não sei quando irei poder planear outra vez, sentir-me livre de tempos a tempos para sair fora desta realidade, e espero atentamente o momento em que atingiremos o fundo do poço, porque aà já saberei que não poderemos descer mais e respirarei aliviada.
Tenho muita, muita pena, que em vez de viver, estejamos a lutar pela sobrevivência, adiando tudo aquilo que queremos enquanto envelhecemos e nos tornamos amargos e desconfiados. Para mim, o que era já nunca, infelizmente, voltará a ser.
Tenho muita, muita pena, que em vez de viver, estejamos a lutar pela sobrevivência, adiando tudo aquilo que queremos enquanto envelhecemos e nos tornamos amargos e desconfiados. Para mim, o que era já nunca, infelizmente, voltará a ser.
Ter sido obrigada a ser administradora do condomÃnio é das piores merdas que já me aconteceu. Já passaram 9 meses e ainda não me habituei a ter a 3ª idade a bater-me à porta sempre que me preparo para fazer alguma coisa, tal como jantar, arrear o calhau ou tomar banho. E como se não bastasse os assuntos relativos ao condomÃnio, tenho de ouvir a história das artroses, das próteses dos dedos, gases, queda de cabelo, queixinhas, enquanto faço um "hum hum" super interessado. Pois esta é a história da última vez que me bateram à porta. Saliento que eu tinha acabado de pôr uma máscara de argila e tinha a cara verde.
Eu - Boa noite.
A vizinha - Então menina. Eu hoje estou muito perturbada. Nem consigo comer, regurgito a seguir... (leva a mão à cabeça e faz voz trémula para mostrar a sua "dor"). Não é que faleceu o senhor do rés do chão? Ele já não mora cá há anos, a casa está vazia... mas gostava tanto dele. Até tenho as chaves da casa e tudo, para emergências. Ele de vez em quanto vinha aÃ, passava de carro, e eu olhava lá para dentro, o homem andava branco. Sabe, ele tinha qualquer coisa de cancro. Ultimamente já lhe faltava o cabelo, estava muito magro e branco. Ontem acordei com pus na unha do pé (e foi neste ponto que a minha atenção se desvaneceu). Nem conseguia pôr o pé no chão. Umas dores, umas dores... Ainda por cima o meu médico estava de férias (sorte a dele). Está a ver o penso que tenho na unha? (e a senhora levanta-o para ficar o mais perto possÃvel da minha cara). Lá me arranjaram isto no centro de saúde, a médica tirou-me o pus todo... se visse o que saiu, já estava verde. Depois vim assim a coxear até casa. Só de subir até à sua casa já me está a doer... Isto até me mete maluca... Sabe o que eu fiz a seguir? Queria ligar para a minha irmã, mas enganei-me e liguei para o filho do vizinho, que tenho aqui gravado no telemóvel. Ele deu-me o número há muito tempo, quando eu ia lá a casa ajudar. Sabe que ele tem asma? É por isso que a casa está vazia. Por mais que se limpe, aquilo tem sempre muito pó. E a irmã dele também tem asma. Não podem morar ali. Eu bem que assisti aos ataques deles, pois assisti. Uma aflição! Mas pronto, enganei-me no número e liguei para o filho do vizinho, mas quando me apercebi que não estava a ligar para a minha irmã, desliguei a chamada. Uma parvoÃce! Daquelas coisas que uma pessoa faz sem pensar. Podia muito bem ter deixado o telefone continuar a chamar e cumprimentá-lo. Não fazia mal nenhum. Depois aquilo fiquei com peso na consciência e fiquei a pensar que eles ainda iam ter uma imagem errada de mim. Então depois de me terem arranjado a unha, ai que dor, telefonei para o rapaz, pedi desculpa por ter telefonado e ter desligado, mas que me tinha enganado e não foi por mal. Mas achei-o assim... murcho. Ele é uma pessoa tão alegre. Lá perguntei o que se passava e ele disse que o pai tinha ido a enterrar... Ai filha... parou-me o coração. Fiquei sem saber o que dizer e com o coração despedaçado... coitado do homem. E eu agora tenho a chave da casa dele e não sei o que hei-de fazer com ela... queria ligar à irmã dele, que é quem está mais ligada à casa, mas não tenho o número. Por isso vim ter consigo, tem aà os contactos nas folhas?
Eu - Não. Isso deve estar na arrecadação nos materiais antigos.
A vizinha - Ai... Eu com esta unha... não consigo ir à arrecadação. Ai, que dói tanto. Mal me consigo mexer. E andar lá a procurar aquilo, toda dobrada... não sei...
Eu - Vou lá amanhã, está bem? (e nisto, antes que a conversa continuasse, gritei para o meu namorado, que estava na sala, a perguntar se o jogo já tinha começado. Não havia jogo nenhum, era suposto que ele dissesse que sim para me safar. Mas claro que respondeu "QUAL JOGO?" e a minha estratégia foi por água abaixo).
Nisto seguiu-se mais uns cinco minutos de conversa sobre dores, até que uma outra vizinha apareceu, deve ter olhado para a minha cara verde de argila e pensado que eu já estava verde de enjoo de ouvir a outra senhora, e levou-a arrastada por um braço. Se calhar pensou que tenho alguma doença venérea, mas isso era o que me dava jeito, podia ser que me largassem a braguilha. O que me custa é ter perdido tanto tempo da minha vida, numa conversa que podia ter sido assim:
Eu - Boa noite.
A vizinha - Boa noite. Tem as folhas dos contactos consigo?
Eu. - Não. Estão na arrecadação. Vou procurar e levo-lhe amanhã, está bem?
A vizinha - Ok. Até amanhã!
Eu - Boa noite.
A vizinha - Então menina. Eu hoje estou muito perturbada. Nem consigo comer, regurgito a seguir... (leva a mão à cabeça e faz voz trémula para mostrar a sua "dor"). Não é que faleceu o senhor do rés do chão? Ele já não mora cá há anos, a casa está vazia... mas gostava tanto dele. Até tenho as chaves da casa e tudo, para emergências. Ele de vez em quanto vinha aÃ, passava de carro, e eu olhava lá para dentro, o homem andava branco. Sabe, ele tinha qualquer coisa de cancro. Ultimamente já lhe faltava o cabelo, estava muito magro e branco. Ontem acordei com pus na unha do pé (e foi neste ponto que a minha atenção se desvaneceu). Nem conseguia pôr o pé no chão. Umas dores, umas dores... Ainda por cima o meu médico estava de férias (sorte a dele). Está a ver o penso que tenho na unha? (e a senhora levanta-o para ficar o mais perto possÃvel da minha cara). Lá me arranjaram isto no centro de saúde, a médica tirou-me o pus todo... se visse o que saiu, já estava verde. Depois vim assim a coxear até casa. Só de subir até à sua casa já me está a doer... Isto até me mete maluca... Sabe o que eu fiz a seguir? Queria ligar para a minha irmã, mas enganei-me e liguei para o filho do vizinho, que tenho aqui gravado no telemóvel. Ele deu-me o número há muito tempo, quando eu ia lá a casa ajudar. Sabe que ele tem asma? É por isso que a casa está vazia. Por mais que se limpe, aquilo tem sempre muito pó. E a irmã dele também tem asma. Não podem morar ali. Eu bem que assisti aos ataques deles, pois assisti. Uma aflição! Mas pronto, enganei-me no número e liguei para o filho do vizinho, mas quando me apercebi que não estava a ligar para a minha irmã, desliguei a chamada. Uma parvoÃce! Daquelas coisas que uma pessoa faz sem pensar. Podia muito bem ter deixado o telefone continuar a chamar e cumprimentá-lo. Não fazia mal nenhum. Depois aquilo fiquei com peso na consciência e fiquei a pensar que eles ainda iam ter uma imagem errada de mim. Então depois de me terem arranjado a unha, ai que dor, telefonei para o rapaz, pedi desculpa por ter telefonado e ter desligado, mas que me tinha enganado e não foi por mal. Mas achei-o assim... murcho. Ele é uma pessoa tão alegre. Lá perguntei o que se passava e ele disse que o pai tinha ido a enterrar... Ai filha... parou-me o coração. Fiquei sem saber o que dizer e com o coração despedaçado... coitado do homem. E eu agora tenho a chave da casa dele e não sei o que hei-de fazer com ela... queria ligar à irmã dele, que é quem está mais ligada à casa, mas não tenho o número. Por isso vim ter consigo, tem aà os contactos nas folhas?
Eu - Não. Isso deve estar na arrecadação nos materiais antigos.
A vizinha - Ai... Eu com esta unha... não consigo ir à arrecadação. Ai, que dói tanto. Mal me consigo mexer. E andar lá a procurar aquilo, toda dobrada... não sei...
Eu - Vou lá amanhã, está bem? (e nisto, antes que a conversa continuasse, gritei para o meu namorado, que estava na sala, a perguntar se o jogo já tinha começado. Não havia jogo nenhum, era suposto que ele dissesse que sim para me safar. Mas claro que respondeu "QUAL JOGO?" e a minha estratégia foi por água abaixo).
Nisto seguiu-se mais uns cinco minutos de conversa sobre dores, até que uma outra vizinha apareceu, deve ter olhado para a minha cara verde de argila e pensado que eu já estava verde de enjoo de ouvir a outra senhora, e levou-a arrastada por um braço. Se calhar pensou que tenho alguma doença venérea, mas isso era o que me dava jeito, podia ser que me largassem a braguilha. O que me custa é ter perdido tanto tempo da minha vida, numa conversa que podia ter sido assim:
Eu - Boa noite.
A vizinha - Boa noite. Tem as folhas dos contactos consigo?
Eu. - Não. Estão na arrecadação. Vou procurar e levo-lhe amanhã, está bem?
A vizinha - Ok. Até amanhã!