Palavras do Abismo

O vídeo da campanha BPI de apoio à seleção de futebol feminina, que tem tido tantas reações positivas e emotivas, trouxe-me à memória lembranças antigas e um motivo de orgulho que não tenho vergonha de celebrar.

Corria o ano de 1998, ou 1999. Era uma adolescente que praticava bastante desporto e que sempre gostou de futebol. O meu grupo de amigas e colegas também gostava, e era frequente andarmos de patins, de bicicleta, jogarmos à bola, ao elástico, e por aí fora. E conversávamos sobre como seria bom que o clube de futebol da terra tivesse uma secção feminina. Impulsionadas pelo espírito empreendedor de uma de nós, decidimos ir à sede do clube e perguntar o que seria preciso para a criar. Lá fomos, cinco meninas representantes da ideia. Receberam-nos, curiosos, meio reticentes, colocando entraves - que não havia verbas para nada, nem equipamentos, nem transporte, nem motorista, nem alimentação, que já era difícil para os rapazes, que não havia balneários femininos, não podiam pagar a um treinador, existiam poucos campos e a conciliação de horários era difícil. Portanto, uma missão improvável.

Fomos embora, mas em vez de esmorecermos, curiosamente, começámos imediatamente a pensar em formas de ultrapassar esses entraves. E se fizéssemos rifas? Vendêssemos bolos? Puséssemos um mealheiro nas lojas para nos ajudar? Se falássemos com as pastelarias e cafés a ver se algum nos patrocinava? E se os pais ajudassem e pudessem conduzir as carrinhas do clube, e dividir o combustível com os outros pais?

Acabámos por voltar noutro dia. Levámos alguns dos pais. Viram que estávamos realmente empenhadas. E as coisas começaram a materializar-se. Uma antiga glória do clube, o grande Belchior, homem que admirarei até morrer, estava presente e ofereceu-se para ser nosso treinador, sem nada em troca. Mais tarde, trouxe outra glória, o Patã, como adjunto. Um dos contactos que fizemos (julgo que era uma gráfica, mas a memória falha-me) aceitou patrocinar-nos e pumba, já tínhamos equipamentos. O Belchior, que estava por dentro de tudo, começou a mexer-se no sentido de encontrar buracos nos horários onde pudéssemos treinar e usar os balneários dos rapazes. Usou também os seus contactos para saber de outras equipas femininas do Alentejo que se dispusessem a jogar contra nós e fazer torneios. Começámos a treinar e a palavra espalhou-se. Raparigas das vilas e aldeias ao redor telefonavam ao clube, queriam saber se havia transporte para poderem ir treinar a Sines. Alguns dos pais disponibilizaram-se para as transportar. O meu pai era um dos nossos maiores apoiantes (bem-hajas, pai), e fazia tudo o que fosse preciso. Assim como a minha avó materna, viciada em futebol, que se empolgava demasiado e que me envergonhava mandando caralhadas aos árbitros e às jogadoras adversárias. Nos jogos, éramos recebidas com muita simpatia por todos os clubes, e em todos os jogos havia convívio depois, com muita comida feita pelas famílias das jogadoras, e nós retribuíamos nos jogos em casa. 

Foi uma época muito especial para mim. Senti-me parte de algo, senti-me realizada por fazer algo que amava, e muito orgulhosa por termos conseguido levar para a frente a nossa teimosia. 

Chegou a altura de rumar para a Universidade, e como muitas de nós tínhamos a mesma idade, tememos pelo futuro da equipa. A verdade é que, depois de partirmos, a equipa quebrou e houve um período de intermitências. No entanto, a equipa feminina do clube continua a existir e, das notícias que me chegam, está bem e recomenda-se. Quase 25 anos depois dos primeiros passos, o sonho de algumas meninas abriu portas para que as meninas de hoje possam ter um local e condições para praticarem futebol. Isso enche-me de orgulho e aquece-me o coração.

Apesar das adversidades e de algumas bocas que nos despejavam em cima, a maioria dos familiares e amigos das jogadoras sempre nos apoiaram, e não podem imaginar como estávamos e estamos ainda agradecidas por isso. No entanto, hoje, em 2023, ouço coisas como que não percebo nada de futebol, que devia era estar na cozinha. Que se foda a masculinidade tóxica, que se fodam todos os que se apegam a papéis tradicionais de género, que se fodam os machistas! Todos podemos ser aquilo que quisermos. Como eu, que, com 1,63m, fui guarda-redes. E competente. Quem diria?

Levo para as cinzas um apreço desmedido pelos misters Belchior e Patã, exemplos de paciência, entrega e aceitação. Pelo mister Dino, guarda-redes dos juniores e séniores, que se ofereceu para ser meu treinador de guarda-redes e me obrigava a fazer 500 abdominais e a correr na praia de areia grossa com ela pelos joelhos. Pelo Limão, que já lá mora, sempre disponível para atender às nossas lesões. Pelo clube inteiro, meu Vasco da Gama. Pelas famílias das jogadoras, que nem por um segundo ficaram de pé atrás por sermos mulheres a jogar futebol. E por cada uma das minhas colegas de equipa, com quem passei alguns dos momentos mais fantásticos de sempre.

Que nenhum sonho ou vontade se castre por causa do género com que se nasce.

E aqui estamos nós, para a posteridade.







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Rosamund Pike é Marla Grayson, tutora legal de idosos. Ao contrário do que pensamos serem as características de alguém com essa função, onde pelo menos esperamos compreensão e empatia, Marla é implacável, calculista, fria, e também uma boa actriz no que toca a esconder os seus verdadeiros sentimentos relativamente aos idosos. No fim de contas, são só isso, contas, números, legados que ela pode vender e rentabilizar. Juntamente com a sua sócia e namorada, Fran, dirige este negócio com mão de ferro e inteligência, o que lhe rende fama, muito dinheiro e boa reputação junto daqueles a quem pretende enganar, tornando a sua vida muito fácil.

No meio deste mar de rosas de enganos, surge uma idosa que é a vítima perfeita. Tem um óptimo pé de meia, uma casa valiosa e, mais importante do que tudo, não tem familiares que possam levantar entraves ao processo que se está prestes a iniciar - alegando que está a perder as faculdades mentais e que é um perigo para si própria, Marla e companhia conseguem facilmente convencer um juiz de que esta idosa, que até então era perfeitamente independente e tinha uma boa vida, deverá ser encaminhada para um lar, medicada, sedada, e que Marla deverá ficar responsável por ela e pelo seu património. Txaran!

Mas eis que esta idosa não é uma mulher qualquer, anónima, sem ninguém, como inicialmente Marla pensava. É então que entra em cena Roman (Peter Dinklage, devem lembrar-se do saudoso Tyrion de Game of Thrones), com a pretensão de resgatar aquela mulher a qualquer custo, sem ainda saber que Marla é uma autêntica leoa dura de roer. Dá-se início a uma troca de galhardetes menos simpáticos de parte a parte.

Rosamund já ganhou um globo de ouro por esta performance, e não ficarei admirada se for nomeada aos Óscares. Ela está para este papel como os meus livros para a estante - ficam tão bem ali encaixados. Capaz de despertar no espectador tanto sentimentos de repulsa como de admiração, é um dos pontos altos de I Care a Lot. Odiamo-la, mas odiamo-la com paixão. Símbolo do capitalismo desenfreado, a sua personagem é o epíteto da manipulação.

Não é um filme que vai agradar a todos. Penso que a maioria das pessoas, que anseia por heróis, vai ficar desiludida - aqui, não os há. Não existem personagens boas (tirando algumas de participação curta) para lhes aquecer o coração e dar esperança - alguém por quem torcer. Isto é uma guerra entre pessoas promíscuas, e o prazer de assistir a este filme está também na observação desse confronto caótico de egos e de poder. Outro ponto que podem não gostar é que há não só um, mas dois plot twists, que vão mudar tudo, e quiçá estragar a experiência a espectadores que não estão para aí virados. 

Para além de toda a ação e humor negro, o filme é um retrato da realidade podre do sistema de saúde e cuidados americano, onde há engano, conluio, violência e muito pouca dignidade para os visados.


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Lembram-se da Bigbrand? É a agência de comunicação responsável pelo fantástico anúncio de emprego, há um mês e pouco, onde pediam uma designer charmosa, cheirosa e talentosa:


Ora, foram enxovalhados nas redes sociais, está claro. Depois, eliminaram o anúncio e emitiram um pedido de desculpa esfarrapado, em que basicamente disseram a pérola: "estava longe de imaginar que o sexismo era um assunto tão polémico". Alegar desconhecimento de causa é daquelas coisas que nem é válida, mas pior do que isso é atirar desavergonhadamente essa alegação para o ar, como se a desigualdade entre mulheres e homens não fosse facto consumado desde sempre. Não é um "assunto polémico", é um facto do qual todos nos devemos envergonhar. As mulheres não têm acesso aos mesmos empregos, posições de chefia, nem ganham o mesmo do que os homens no desempenho das mesmas funções. Factos.
Mesmo que fossem uma empresa a operar numa floresta no meio do nada, sem acesso à informação e sem saber nada do que se passa no mundo, vos garanto que nunca escreveriam um anúncio pedindo um designer charmoso e cheiroso. Tanto que, na segunda parte deste anúncio, as características que pedem para "um" designer, homem, são talento e criatividade. Já uma gaja tem no mínimo de ter charme e cheirar bem. Ridículo, senhores.

Isto não termina aqui. Há uns dias deparei-me com um post desta mesma empresa, publicado neste dia, 8 de março, dia da mulher, em 2016. Se entretanto não o removerem, podem ver aqui.


Sim, isto é real. Um "Feliz Dia da Mulher" representado por uma senhora de joelhos a limpar o chão. Vá, eu sou designer, e sei que com o preço que pagaram por essa fotografia podiam ter escolhido outra, de entre as milhões disponíveis, que não fosse um estereótipo. Isto é a perpetuação machista do preconceito de que existem tarefas e profissões reservadas às mulheres, e outras aos homens. E, apesar de hoje em dia existirem mulheres a desempenhar funções que antes estavam reservadas a homens - camionistas, taxistas, polícias, futebolistas... - e homens que desempenham funções que antigamente eram consideradas "de mulher" - educadores de infância, profissionais da limpeza, cuidadores, costureiros... - está longe de ser não só equilibrado, como essas pessoas ainda levam com bocas, piadinhas e sofrem bullying por o fazerem.

O Dia da Mulher não é um dia feminista. É um dia que nos lembra que somos todos iguais. E surgiu porque há muitos anos atrás as mulheres não tinham sequer direito a votar, quanto mais condições de trabalho justas e idênticas. É isso mesmo - uma procura eterna por justiça. A mulher não quer mais do que ninguém, só quer libertação dos privilégios de um género que parecem não ter fim. Estamos em 2021 e existe, sim, existe mesmo, muita gente, demasiada gente, que acha que o lugar da mulher é na cozinha, a cuidar de filhos, qualquer coisa recatada e que não requeira grande análise, intelecto, força ou raciocínio. Guess what bitches, o lugar de uma gaja é na revolução! Feliz dia da mulher!
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Recentemente estava num concerto, e enquanto não começava as pessoas estavam sentadas no chão. Eu e o meu namorado, também sentados, levantámo-nos quando chegou a hora de começar (assim como todas as pessoas que se encontravam na frente). Nisto, veio uma tiazoca feita furacão lá de trás, que se dirigiu a mim (logo a mim, que odeio esta espécie de socialite-não-me-toques) no seu vestido azul esvoaçante e cabelos loiros cheirosos, com a seguinte conversa:

Tia: Olhe, desculpe, mas porque é que se estão a levantar??
Eu: Porque o concerto vai começar...
Tia: Mas assim as pessoas que estão sentadas não conseguem ver!
Eu: Então levantem-se!
Tia: Há pessoas que não querem ou não podem levantar-se!
Eu: Então venham cá para a frente!
Tia: Olhe, menina, eu sou da organização, tenho vindo cá todos os dias, e as pessoas têm estado sentadas no chão!
Eu: Eu tou-me a cagar para o que as outras pessoas fazem, eu vejo os concertos em pé!
Tia: Que aborrecimento, não se podem sentar?
Eu: Querida, os concertos são para dançar, e pular, e cantar, e gritar, não sabia? É assim que as pessoas normais fazem, você não deve estar habituada a estas andanças não? Isto não é o rooftop sunset party!

Vendo que não conseguia levar a sua avante, a tia engoliu em seco e foi embora, fresca, esvoaçante mas com cara de enterro. As pessoas à nossa volta ficaram boquiabertas e sem palavras. Mas quando a enfadada finalmente bazou, começaram a mandar bocas, a perguntarem, por exemplo, se a senhora queria que lhe levássemos um cocktail e um canapé, ou uma singela massagem aos pés cansados metidos naqueles saltos difíceis.

Merda desta gente mete-nojo. A querida estava sentada porque tinha um dos poucos pufes disponíveis. O resto do povo estava no chão sujo, cheio de pó, com algum lixo. Havia uma miúda pequena com uma perna maior que a outra, literalmente, que se aguentou o tempo todo em pé e a dançar, e a fofuxa queria um lugar VIP. Para além disso, qual é a banda de pop-rock (que era o caso) que quer ver o público a curtir com o rabo sentado? 

Eu aturo cada um, foda-se.


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"Grace compreende que os encómios são para o cozinhado, todavia percorre-a a sensação reconfortante de mulher cortejada. E agrada-lhe. Estranhamente, agrada-lhe."

in Uma Noite Não São Dias, de Mário Zambujal (2009)

en·có·mi·o
substantivo masculino
1. Elogio rasgado.
2. Gabo, aplauso, louvor.

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Se alguém me dissesse "aquela gaja quer dar-te um encómio" provavelmente partia a fuça à desgraçada. Ai quer? Venha cá que eu dou de volta e a dobrar! Males entendidos há muitos e se calhar algumas guerras poderiam ter sido evitadas se houvesse um dicionário à mão. Enfim, encómios afinal são coisas positivas - grandes elogios e louvores. No caso da citação, faz parte do cortejo homem-mulher, que isto para levar uma gaja de bem a tirar a calcinha é preciso ser especialista na arte do encómio...


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GLOW é uma série de comédia da Netflix que, por muito que custe a acreditar, é baseada em factos reais.

Nos anos 80 nasceu o grupo GLOW - Gorgeous Ladies of Wrestling. Cheias de glitter, penteados enormes, laca, mil e uma cores berrantes, maquilhagem exagerada, fatos super cavados, estas fortes e inovadoras mulheres protagonizaram grandes momentos de televisão (e não só). Indo contra a predominância masculina na indústria do wrestling, elas mostraram que as mulheres também são combativas, criativas, inventivas e capazes num 'desporto' duro de roer.

Quando comecei a ver a série da Netflix que conta a história destas mulheres pensei que era um exagero. Não deviam ser assim. Só depois de ver vídeos e fotos como esta em baixo, pensei, OK - se calhar a realidade até foi mais estranha e espatafúrdia que a ficção.



A série é uma lufada de ar fresco - muito divertida, leve, com a dose certa de drama - mas o que mais destaco é a construção das personagens. Eu sei que a maioria são baseadas em mulheres que realmente existiram, e isso ajuda à definição das personas, mas mesmo assim. Por trás de cada wrestler há uma backstory, sempre influenciada pela mulher que cada uma é. É muito interessante assistir à construção dessas personagens e saber que as distinguiríamos à distância, e que passados uns quantos episódios já sabemos enumerar as características de cada uma (e não são poucas). E isto em episódios de meia hora.

O seu crescimento enquanto profissionais também é espantoso. De notar que começaram apenas para ganhar dinheiro e por falta de alternativas numa época em que o protagonismo feminino no mundo laboral era muito baixo, e acabaram por abraçar o projecto e fazer dele o mundo delas, e um sucesso completo.

Os anos 80 estão realmente lá. Não são só os já mencionados penteados e maquilhagem super exagerados. As cores, os hábitos das pessoas, as convenções sociais - fazendo de GLOW um dos melhores retratos da década que já vi em televisão. É nostálgico para muitos, uma risota em muitos momentos, mas também sério, ao abordar temas como o racismo, a infidelidade ou o aborto.

Papei duas temporadas num instante, e a terceira está quase a chegar, em Agosto.

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