Palavras do Abismo

Foi há cerca de um ano que tomei a decisão. O meu fundo já o sabia, mas adiava. Tinha medos, receios, "e ses" infinitos, pés atrás. As noites sem dormir, de barulhos, buzinas, vozes embriagadas, ambulâncias pela noite dentro, derrapagens, rateres sem respeito às horas, à minha janela, foram o desgaste que precisava para dar o passo. O meu coração palpitava de assombros noturnos a todo o instante, e para além do mais, já não podia com os transportes lisboetas, as avarias, as greves, os atrasos, os suprimidos, as obras, o trânsito violento, a falta de calma, de educação, as sardinhas em lata, respirar sovacos alheios, peidos alheios, aguentar, aguentar, aguentar, para apenas repetir no dia seguinte. Vivia em sobressalto constante e sentia-me sempre esgotada. E, ainda, Lisboa não era a mesma que conheci quando, aos 18, vim do Alentejo para estudar e me deparei com ela. Em quase duas décadas, a cidade mudou de rosto e de sorriso. Deixou de ser uma terra nossa que queríamos mostrar aos outros com orgulho, para uma terra dos outros, os que podem pagar, com ou sem orgulho, um pedaço dela. E a cidade adaptou-se a eles, ao dinheiro, não a nós.

Então, após 19 anos a morar em Lisboa (e arredores), decidi ir embora e regressar ao Alentejo que me viu nascer e crescer. Fui embora, agradecida pelos ensinamentos da cidade, pelas vivências que me proporcionou, pelos meus amigos, pelas centenas de concertos, festivais, exposições, peças, e tudo o mais que me deu a conhecer e que me tornou a pessoa que sou. Do mesmo modo, se sou mais aberta, recetiva, com sentido de comunidade e empatia, é pela diversidade étnica, cultural e humana que Lisboa me proporcionou. Capital, continuo a gostar de ti, mas como em qualquer relação, gostar não basta.

A modos que me deu na veneta e disse: é agora. Não foi. Demorou muito, muito tempo. Os tempos estão maus, as casas estão caríssimas. Os créditos estão difíceis de obter, as taxas de juro estão pela hora da morte. No trabalho, lutava para que me deixassem ficar a trabalhar remotamente. Os serviços públicos falhavam, faltava sempre qualquer coisa, um papel, uma rúbrica, um comprovativo, uma bufa. Tinha de vender a casa na margem sul. Cismei que havia de tratar de tudo sem recorrer a agências, por dinheiro, ou falta dele, e consegui. Levei tempo, mas os astros acabaram por se alinhar.

Já cá estou há uns meses. Parece, agora, que nunca saí daqui, do litoral alentejano. A cacofonia da cidade, as noites sem dormir, as palpitações no coração e o stress parecem fazer parte de uma outra vida. Temia. As saudades dos amigos, o estar distante da ação, o ter tudo perto, ter tanto a acontecer. Não havia razões para tal, porque o isolamento e o silêncio estão a fazer milagres por mim, e os amigos, esses, ficam contentes por ter casa no Alentejo onde podem vir sempre que quiserem. Passei de ouvir os carros 24 horas por dia, junto ao trecho de estrada nacional que levava a Almada onde morava, para acordar com os pássaros e festejar com eles o fim do dia. Em vez de bêbados a vomitar e mijar nas paredes do prédio, recebo a visita de patos que já sabem onde comer a fatia de pão diária. Em vez de ter prédios como vista, agora consigo ver o nascer e o pôr-do-sol, a largura do céu em todo o seu esplendor naqueles tons de azul a jogar com o rosa. Em vez de atravessar a estrada e ter um hipermercado, tenho um jardim enorme de árvores frondosas com lagos e muitas espécies animais. No silêncio da noite, não me assusto com rateres, ouve-se antes as ondas do mar a rebentar lá longe. Em vez de lixo por todo o lado e cheiro nauseabundo nas ruas, agora podia comer do chão e cheira a flores e pinheiros. Não há filas ou multidões, não há trânsito, não há sequer um semáforo. E a comida? Nem se fala.

Tudo tem um tempo. No auge da minha idade adulta recém adquirida, era normal querer sair, descobrir, viver numa cidade grande, experimentar o que tinha de experimentar. E fi-lo. Com o passar do tempo, vamos dando importância a coisas diferentes. É normal. Atenção, que isto não é para todos. Há pessoas que nunca se iriam adaptar. Mas era o que alma e coração pediam, e não podia ignorar mais tempo. Cá, o tempo passa mais devagar e obriga-nos a estar connosco próprios. Se não se estiver à vontade com isso, não se será feliz aqui. Eu estou feliz. 

E, pasme-se, voltei a ter vontade de escrever. Até breve, provavelmente. 



Share
Tweet
Pin
Share
4 comentários
O Luisão é um gato velhote que apareceu há cerca de um ano no bairro do meu pai. Não tem orelhas. Algum acéfalo filho da puta as cortou. Não tem um único dente. Sangra da boca. Está sempre a aparecer com feridas - provavelmente é atacado por outros gatos, ou por putos estúpidos. É bastante debilitado, tem medo de quase toda a gente e não faz mal a ninguém. E é lindo.

Desde então o meu pai tem cuidado dele. Deu-lhe o nome em honra do capitão do Benfica. Dá-lhe patés molinhos todos os dias, desfaz comida com um garfo para ele poder comer, deixa-lhe água. Não o pode levar para casa porque se a cadela se passa, ataca o gato e é o fim dele, mas providenciou uma caixa de cartão forrada e mantas, que colocou num canto do prédio junto ao estacionamento.

É nessa caixa que o Luisão está quase o tempo todo, especialmente nos dias frios ou de chuva. E já é a 3ª vez que alguém faz uma denúncia à Câmara para irem tirar de lá a caixa. O meu pai volta a meter outra e o ciclo repete-se.

E eu pergunto-me: não têm mais nada que fazer na vida? Não têm coisas com que se preocupar? Porque é que não despendem essa energia toda em assuntos que vos toquem? Sejam eles a fome, o desemprego, crianças desfavorecidas, idosos isolados, a educação, não me interessa. Há tantas causas em que podem fazer a diferença, e importam-se com a merda duma caixa de cartão que estraga o ambiente do bairro?

Se não querem ajudar, deixem o bicho viver o tempo que lhe resta em paz. Não atrapalhem. Não dificultem. Se não querem ter uma caixa de cartão a um canto, que tentem arranjar uma casa para ele. Ou ganhem colhões e falem com o meu pai. Não se escondam por trás de um telefonema cobarde que prejudica um ser vivo debilitado que não vos faz mal algum.

Por enquanto, deixem o Luisão em paz. Imaginem-se velhos, sem casa, doentes, constantemente a ser atacados, e ainda por cima tirarem-vos os poucos pertences que têm. Tenham respeito.


Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
Estava a dormir muito bem na casa dos meus pais, na terrinha, e o meu pai acorda-me. "É Natal", diz ele. "Já não é hora de estar na cama". E respondo "Mas estamos no verão." "E então? O Natal sempre foi no verão!". Levantei-me, confusa, e consulto todos os calendários. É mesmo verdade. Dia 25 de dezembro, apesar de estarem 30 graus lá fora. O meu pai remata: "Então esqueceste-te que é Natal. Isso significa que não compraste prendas para ninguém!". Aí senti-me culpada e preparei-me para sair e fazer umas compras de última hora.

Decidi então ligar ao meu melhor amigo para me ajudar. Vá-se lá saber porquê, o meu melhor amigo era o Ethan Hawke. Ele veio ter comigo e fomos às lojas apinhadas. Mas era verão, e o que havia à venda eram toalhas de praia, chinelos, protector solar, óculos de sol, bóias em forma de crocodilo, e portanto foram essas as compras para a família.

"Olha este cinto tão giro para a minha tia!", disse, contente por ter encontrado outro tipo de prenda. Curiosamente, o cinto era uma forca de corda. Mas já estava a falar sozinha, o Ethan tinha-me deixado. Fui à procura dele e encontrei-o hipnotizado numa barraca de sandes de leitão. "Não acredito que uma coisa destas exista!", disse ele rejubilante, cheio de gordura na boca e com uma sandes em cada mão.

E foi com a imagem do Ethan Hawke todo lambuzado que acordei, e a única coisa real deste sonho é que é verão.

Ethan Hawke my new bff

Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
Tenho fobia a todos os negócios que têm por base a exploração animal. O circo está no topo da lista. Ninguém consegue imaginar o que é ser-se selvagem, pertencer às florestas e savanas, ao céu infinito, aos desertos sem fim à vista, e ver-se a viver dentro duma jaula, contra vontade. Podem dar-me os argumentos que quiserem - os animais são bem tratados, já estão habituados a essa vida, etc - que eu não os vou ouvir. Usar entretenimento animal para obter lucro e manipulá-los para bel-prazer é um acto cruel.

É fácil. Imaginem-se a viver num espaço do tamanho da vossa casa de banho, e têm apenas uma pequena janela para ver o mundo. Então, de vez em quando vem alguém que vos dá chibatadas, ensina-vos a fazer truques para que recebam comida e afecto. Depois vão para dentro de uma tenda para que toda a gente vos veja e faça barulho à vossa volta. E toda a vossa vida será apenas isto.

Évora deu um passo em frente. Foram os cidadãos que meteram mãos à obra, criaram uma petição, chegaram-se à frente, e foram ouvidos. A partir de agora, já não vão existir circos com animais nessa localidade. Que exemplo, Évora! Uma mostra da força do povo e do respeito por este mundo que nos acolhe. Que as vossas convicções sejam seguidas pelo país e pelo mundo inteiro.




Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
Hoje o cante alentejano foi considerado património imaterial da Humanidade. Bastaram 5 minutos para convencer a UNESCO do mérito da candidatura e no fim pediram aos homens de Serpa para mostrar o cante ao vivo, o que consideraram exemplar.

Não podia ter mais orgulho no meu Alentejo, e nestes cânticos que cresci a ouvir, pela voz dos meus avós, na rádio, nas feiras, nos saraus, nos cafés e nas tascas. Um cante que transporta consigo amor, desilusão, esperança, mágoa, alegria, dor, e que sem dúvida contribuiu para moldar a pessoa que sou hoje.

É o reconhecimento mundial da beleza do sentimento transportado durante mais de um século na voz do povo. E ainda mais me alegra saber que a tradição está viva e continuará a marcar gerações.

Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
O meu Alentejo oferece imensas coisas, e uma delas é o safari. Desde pequena que vou ao Badoca Park e é sempre bom voltar, e poder tocar, cheirar, observar, o que de melhor o mundo tem, que para mim são os animais. Eles mostram que diversas espécies de tantas formas e cores podem viver em comunidade e respeitar-se, que é muito mais do que a maioria dos humanos pode dizer.
Hoje voltei, e foi bom estar rodeada por estes seres sem ponta de maldade nos olhos e muita vontade de receber mimo.




Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
Não posso deixar de ter saudades da altura em que não tinha responsabilidades. Quando as maiores discussões eram sobre as chuteiras cheias de lama quando voltava a casa depois dos treinos. Quando só tinha de estudar e ter boas notas. Quando passava os meus dias no Alentejo, a sonhar acordada sobre a minha ida para a grande cidade.

10 anos passaram e tudo mudou. Tenho um trabalho na grande cidade, uma casa, outros amigos, outro namorado, outras preocupações. Gosto da minha vida, de um modo geral. Mas dava uma boa quantidade de dinheiro para ter um dia igual à época dos meus 17 anos. Ir jogar à bola até às altas horas da noite, tomar banho de mar a qualquer hora do dia, os meses intermináveis de férias, os passeios de bicicleta na planície alentejana, os segredos e os risinhos da adolescência, e sonhar sobre como seria a minha vida aos 27. 


Share
Tweet
Pin
Share
No comentários
Older Posts

Translate

Seguir

  • twitter
  • Google+
  • pinterest

Recentes

Categorias

pessoas estranhas música gajas coisas boas filmes desabafos animais as coisas que se aprendem cinema portugal morte trabalho vida sonhos tristeza merda séries ambiente redescobertas musicais vozes de gaja

Top da semana

  • Pessoas estranhas #13 - as que cortam as unhas em todo o lado
  • Porque é mudaram o puto do The Strain?
  • As coisas que se aprendem #4 - os bonobos pervertidos
  • As coisas que se aprendem #73 - bestunto
  • Home
  • As coisas que se aprendem #8 - Freddie Mercury era um refugiado

Arquivo

Pesquisar

Blogs fixolas

  • Abencerragem
    zonas de conforto
  • Ponto Aqui! Ponto Acolá!
    "Maio maduro Maio"
  • Manuscritos da Galaxia
    Abbas Kiarostami - “O Sabor da Cereja” / “Ta’m Guilass”
  • Unicornia Cross Stitch
    Terminator - pdf pattern
  • Naturalmente Cusca
    Sobre o Casamento e a Maternidade (parte 2)
  • Dissertações (pouco) científicas
    Embirrações #9
  • thebarraustuffs
    Sara Tavares @ Mexefest
  • Por Falar Noutra Coisa

Visitas

No abismo

Created with by ThemeXpose | Distributed by Blogger Templates